“Fomos estigmatizados como ‘bichinhas dando pinta’, não atores que usavam o teatro para esconder o desejo de se travestir, para não ter de assumir sua sexualidade. Levamos muitos anos batalhando até construir uma história de respeito.” O percurso do grupo As Travestidas, surgido a partir de pesquisas do ator, diretor, dramaturgo e produtor de teatro Silvero Pereira, é uma história de afirmação e resistência – como a dos homens e das mulheres trans que o artista procura pôr em cena.

Nesta entrevista, Silvero Pereira fala sobre a trilogia de espetáculos que acabou originando o grupo, sobre o projeto BR Trans – uma viagem para coletar relatos de travestis de diversas regiões do Brasil – e sobre os desafios das políticas públicas no que tange à inclusão dessa minoria na sociedade brasileira.

Silvero Pereira dirigiu mais de 30 espetáculos, entre eles: O Mistério da Cascata, O Destino a Deus Pertence e Quem Tem Medo de Travesti. No cinema, atuou no longa Serra Pelada e nos curtas As Bodas do Diabo, Transophia e GLOSSário. É pesquisador na área da travestilidade como performatividade do ator e militante da causa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTTT).

(Foto: Valério Lima)

Você pode comentar quais foram os principais desafios no processo de construção da trilogia de peças Uma Flor de Dama, Cabaré da Dama e Engenharia Erótica – Fábrica de Travestis?

A princípio não se tratava de uma trilogia. O primeiro substrato dessa pesquisa, Uma Flor de Dama (2002), surgiu como uma inquietação pessoal, uma vontade de levantar questões sobre a travesti na nossa sociedade, com inspiração no conto “Dama da Noite”, de Caio Fernando Abreu. Posteriormente, veio a necessidade de aprofundar a temática, por dois motivos. Primeiro, porque muita coisa vivenciada durante a pesquisa e construção estética do espetáculo não entrou na montagem desse primeiro trabalho, ficando então guardada para futuros projetos. Segundo, porque a relação com os movimentos de militância provocou novas discussões. Desse modo, veio o segundo projeto, Cabaré da Dama (2008), e o terceiro, Engenharia Erótica – Fábrica de Travestis (2010). Esses três trabalhos agregavam novos artistas que acabaram formando o grupo As Travestidas.

Por se tratar de um coletivo de artistas que só produz obras com a temática da travestilidade e do transformismo, nossa maior dificuldade foi construir uma relação de credibilidade com a classe artística teatral, que, por preconceito, durante muitos anos nos julgou como uma arte menor. Fomos estigmatizados como “bichinhas dando pinta”, não atores que usavam o teatro para esconder o desejo de se travestir, para não ter de assumir sua sexualidade. Desse modo, levamos muitos anos batalhando até conseguir provar o contrário e compor uma história de respeito na construção da nossa estética e muitos anos até conseguir furar os espaços de festivais, centros culturais e editais de incentivo às artes. Fizemos, assim, uma trajetória de produção independente.

Na construção da peça BR Trans você vivenciou o dia a dia das travestis de várias regiões do Brasil. Você pode comentar um pouco sobre os hábitos culturais e como elas se relacionam com espaços como museus, institutos, Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs), Pontos de Cultura etc.?

O projeto BR Trans consistia, no início, em um deslocamento entre Fortaleza (CE) e Porto Alegre (RS), na tentativa de identificar pontos convergentes e divergentes desses dois polos regionais do Brasil. Entretanto, a ideia tornou-se maior, pois havia a necessidade de conhecer outras regiões para compreender melhor o universo trans brasileiro.

Somos um país muito plural, cada região e cada estado possui sua cultura e suas leis, principalmente em se tratando das questões LGBTTT. No Nordeste ainda não temos leis contra homofobia, ambulatórios para acompanhamento de tratamento hormonal, cirurgias para transexuais. Temos poucas travestis nas universidades. Somos uma das regiões que mais mata travestis e transexuais no país. Enquanto isso, alguns estados do Sul e Sudeste registram bons números de travestis nas universidades, legalizaram o uso de nome social, regulamentaram as cirurgias para transexuais, possuem um mercado de trabalho que tem se aberto a esse grupo e mantêm um sistema carcerário com alas específicas para a população LGBTTT. Isso sem falar na Região Norte. Muito me interessa chegar ao Acre e ver como travestis e transexuais conseguem construir sua identidade de gênero numa das cidades com grande índice de homofobia.

As Travestidas (Foto: Sol Coelho)

 

Ainda dentro dessa pesquisa de campo, você conheceu grupos ou coletivos formados por travestis, nas diversas expressões artísticas?

Pelo que eu sei, no Brasil As Travestidas é o único grupo de teatro que desenvolve trabalhos exclusivamente sobre travestilidade e arte. Tenho conhecido algumas pesquisas isoladas em espetáculos como Luís Antônio – Gabriela, de Nelson Baskerville, em São Paulo; Borboletas de Sol de Asas Magoadas, de Evelyn Ligocki e Celina Alcântara, no Rio Grande do Sul; e Avental Todo Sujo de Ovo, de Marcos Barbosa, do Ceará, além do trabalho do grupo Toda Deseo, de Minas Gerais, e dos artistas Rodolfo Lima, Ricardo Marinelli, Erivelto Vianna e André Masseno. Entretanto, meu maior diálogo sempre foi com as transformistas de boates como Flávia Fontenelle, Rayanna Rayovack, João Carlos Castanha, Laurita Leão, Lena Oxa, Silvetty Montilla e Tchaka Drag Queen.

Quem forma seu público? Existe alguma ação de formação? Você considera que a divulgação dos espetáculos chega até as travestis?

Nossos espetáculos chegam, sim, às travestis e transformistas. Somos muito cuidadosos com isso em toda e qualquer cidade que estejamos nos apresentando. Afinal de contas, são elas as representadas e, para nós, é necessário essa relação de troca para compreender se estamos realizando o trabalho com respeito, colaboração e dignidade, contribuindo para uma nova visão desse universo.

Com base nas experiências relatadas no processo de construção das suas peças, quais são os principais desafios para as políticas públicas de cultura contemplarem de forma mais imediata as travestis?

É preciso voltar no tempo e novamente reconhecer a importância da arte trans na nossa sociedade. Essa arte foi jogada nos guetos e esquecemos sua construção desde o teatro grego, elisabetano, commedia dell’arte, circo, teatro de revista e tantos outros. As transformistas foram excluídas do meio artístico como algo pejorativo, como se ser transformista fosse apenas uma construção de identidade. É preciso reconhecer a arte trans nos mesmos lugares que o teatro, a dança, a música etc. É necessário reconstruir esse lugar de credibilidade, promovendo e aprovando projetos, pautando artistas transformistas em casas de espetáculos e centros culturais, patrocinando projetos que visam arte e questionamento social. Quando estabelecermos essas bases passaremos a construir uma espaço de “não cota”, mas de igualdade e arte.

Você acredita que os gestores e produtores culturais estão preparados para lidar com a diversidade cultural (aqui entendidos os grupos que são tidos como minorias – LGBT, negros, mulheres, indígenas etc.)?

Sinceramente? Não! Acredito que muitos gestores ainda sofram com o medo de enfrentar o sistema de preconceito cultural que vivemos. Entre uns e outros ainda conseguimos enxergar alguns que furam o cerco e decidem apostar na diversidade cultural. Porém, ainda se pensa que apenas o comercial traz lucros. Ainda é difícil crer que trabalhos que provoquem transformação social sejam construtivos no debate e na estética, e não apenas no quantitativo.

Cabaré da Dama (Foto: Leonardo Pequiar)

 

Você citou em entrevista o exemplo da Luma de Andrade, que é a primeira travesti que concluiu o doutorado no Brasil. Como as políticas públicas podem potencializar o acesso à educação e à cultura para as travestis de forma permanente?

Nossa sociedade é uma tríade família-escola-religião, sendo a escola o centro dessa construção cultural no que se refere às relações em comunidade e à formação do indivíduo. Assim, o grande problema está exatamente na péssima educação que temos, principalmente no respeito à individualidade, ao espaço do outro. É preciso construir profissionais imparciais e defensores da individualidade, seja ela do negro, do umbandista, do evangélico, do gay, da travesti. É necessário criar uma educação de respeito e amor ao próximo, respeitando as diferenças. Só assim teremos uma sociedade mais justa e menos violenta.

A pesquisa de doutorado da psicóloga Valéria Melki Busin mostra como as travestis vivenciam as muitas formas de violência cotidianamente. Na sua opinião, como a arte e a cultura podem ser um caminho para que as travestis tenham seu espaço e sua valorização (intelectual, física etc.) na sociedade?

A arte é um local de acesso imediato ao cognitivo humano. Diferentemente da política ou das pesquisas acadêmicas, ela, quando bem executada e verdadeira, chega ao que há de mais profundo nas pessoas, tocando sua essência, que é a sensibilidade. A arte é essa arte da catarse e do permitir que o espectador se coloque no lugar do outro, e é nesse exercício que alcançamos os questionamentos para uma possível transformação.

Não acredito que um espetáculo teatral possa mudar o modo de pensar de uma pessoa. Acredito que seja capaz de ressaltar a relevância de não julgar e, com isso, se revelar menos ignorante ao outro. A transformação parte desse envolvimento do espectador com a obra. É dele que parte a mudança. A arte, para mim, serve para provocar, trazer questionamentos e fazer com que possamos nos reconhecer iguais ao outro, para então entendê-lo.

Você pode fazer um balanço geral atual e nos dizer quais os impactos e mudanças –nas esferas social e artística – sobre a questão das travestis no Brasil e em outros países nos quais você esteve?

Acredito que temos grandes avanços no Brasil quanto ao movimento LGBTTT tanto na política (Jean Wyllys), na Tv (Laerte Coutinho, TV Plural da TV Brasil), no Cinema (Tatuagem, Beira-Mar, Praia do Futuro, Castanha o Filme), no Teatro (Ninho, Toda Deseo, Travestidas, Muncunza, Rodolfo Lima), Literatura (João W. Nery, Trevisan, Preciado, Berenice Bento), Artes Visuais (Sandro Ka). Enfim, vejo muita potência em todas as instâncias. Porém, também tenho muito medo do momento político que estamos vivendo e seus discursos de ódio. O Brasil é o primeiro lugar em assassinato de travestis e transexuais no mundo. Entre 2012 a 2015, foram quase 600 casos. Só entre janeiro e fevereiro de 2016, já registram mais de 60 casos, uma média de dois homicídios por dia.

É possível enxergar mais travestis no mercado de trabalho, dentro das escolas e com maior aceitação nas famílias e nos relacionamentos amorosos. Porém, ainda estamos longe de ser um lugar seguro. O Brasil é um país que finge ser democrático e libertário, mas que na verdade é violento, preconceituoso e assassino.

BR Trans (Foto: Caíque Cunha)

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