Uma criança de colo carregada pela mãe. A chuva despenca sobre as cabeças. Transeuntes correm em busca de guarida. O conforto do colo materno contrasta com as nuvens apocalípticas e o aguaceiro. A mãe para em frente a um lugar coberto de mármore frio. O cartaz iluminado mostra algum super-herói ou monstro e na parte superior vemos uma placa onde se lê HOJE. Cheiro de pipoca no ar. A criança sente medo da sala escura, uma espécie de caverna, sons caminham dentro da escuridão, parece um útero. Já sentada na poltrona, depara-se com um raio que a rasga ao meio. Ela nunca havia visto uma imagem tão gigantesca. Não teve como fugir, ficou apenas sucumbida e hipnotizada pela luz que dançava diante dela. Dança da morte.
Essa é a primeira lembrança que tenho de uma sala de cinema. Não sei se é verdade, tenho quase certeza de que não é, mas a guardo na memória e defendo a sua existência no grau mais alto da crença humana. Essa delirante cena é mais verdadeira que a memória de algo que fiz há meia hora. A memória fugaz não interessa à alma.
Eu e minha família morávamos em Guarulhos, frequentávamos o Cine Star e às vezes íamos ao bairro da Penha, em São Paulo, no Cine São Geraldo. Nos cinemas de bairro, de cidades suburbanas ou do interior, os filmes eram exibidos com certo atraso, o que era bom, porque podíamos ver o que já estava extinto na capital, era como uma segunda chance. Muitas vezes assistíamos a cópias gastas, picotadas e remendadas, com saltos grotescos de cenas.
Ir ao cinema não era rotina, vinha de uma ocasião especial, deveria ter algum motivo, um aniversário, uma comemoração.
Em 1985, meus pais se separaram. Meu pai tinha o fim de semana para ver seus filhos e se incumbiu de levar eu e minha irmã para passear no centro de São Paulo com mais frequência. Sair do Parque Cecap (conjunto habitacional popular criado nos anos 1970 em Guarulhos) e me deparar com o centro de São Paulo era um choque. Os cinemas eram enormes, tinham painéis gigantescos pintados à mão por um taiwanês chamado Ling Hu Cheng. Comecei a me apaixonar por esses painéis. Via o Schwarzenegger numa escala gigantesca e aquilo para mim tinha a importância de uma obra renascentista. Comecei a amar mais esses painéis do que os próprios filmes. Cinema passou a ser a junção dos cartazes, da fachada, do cheiro de pipoca e do hall de espera, o resto era secundário.
Quando eu voltava para Guarulhos, criava, a partir das imagens dos cartazes dos filmes, enredos mentirosos de películas às quais eu nem sequer tinha visto e as narrava para meus amigos, que, na sua grande maioria, nunca tinham pisado numa sala de cinema.
Frequentei muitos cinemas nesse período, todos em crescente estado de decadência: Marabá, Ipiranga, Metrô, Comodoro (projeção em Cinerama que juntava três projetores numa mesma tela), Espacial (que contava com três telas simultâneas na mesma sala projetadas por um projetor espelhado), Ritz, Regina, Olido, Art Palácio, Marrocos, Paissandu...
Minha obsessão por esses espaços arquitetônicos cresceu tanto que comecei a montar maquetes em casa (eu não sabia o que era maquete nem o que era arquitetura). Comprava jornais e recortava os anúncios de cinema, pintava os cartazes em miniatura, reproduzia outros manualmente com guache, lápis de cor ou giz de cera e recriava as salas de cinema no fundo da minha cama, uma beliche serrada de madeira. Isso se tornou um vício. No começo, eu achava normal. Um dia, falei com os amigos: Vamos brincar de cinema? Todos me olharam com desconfiança. Mostrei como fazia, recortei jornais, colei no fundo da cama com cuspe, todos detestaram a ideia e foram embora. Foi um choque descobrir que só eu achava graça e fazia aquilo no mundo. Eu me senti um anormal e decidi dar um tempo com aquela brincadeira solitária.
Tempos depois, arrumei um emprego de entregador de jornais e tive que conviver com a tentação de ver os anúncios da programação de cinema. Minhas mãos tremiam como as mãos de um viciado em abstinência. Na hora da entrega era ainda pior porque me deparava com jornais velhos e me vinha à cabeça a ideia de montar uma maquete do Cine Star com os seus filmes atrasados. Voltei a brincar de cinema, escondido dos amigos e envolto em culpa.
Com o passar do tempo, comecei a curtir música e o brincar de cinema se transformou em cinefilia na adolescência. Desde então, por mais que eu assista a filmes ou os faça, não chego a ter um terço da alegria que tinha ao frequentar as salas de cinema de rua nos anos 1980.
Guardo atualmente um carinho especial por uma sala de cinema na cidade do Recife, na Rua da Aurora, o Cine São Luiz. O cinema foi tombado e recuperado e manteve suas características originais. Gosto de entrar na sala antes de o filme começar e observar os detalhes, sobretudo os lindos vitrais laterais à tela. Poderia passar horas ali sem assistir a filme algum. É um evento no mínimo interessante eu procurar minha memória afetiva paulistana no Recife. Vi nessa sala Febre do Rato, de Cláudio Assis. Uma das cenas mostrava o cinema no qual eu estava a partir de um plano aberto objetivo, do ponto de vista de um barco sobre o Rio Capibaribe. Ao sair do cinema, eu me defrontei com o rio, como se a realidade fosse o espelho do que eu vira dentro da sala.
A nostalgia é uma das piores doenças. O problema não está na destruição do mundo, a destruição é a natureza do homem, o que dói são as lembranças, os fantasmas, esse enredo trágico da mente humana que cria coisas maravilhosas para depois destruí-las.
Benedito, 5 anos, filho dos meus amigos Anelis Assumpção e Curumin, soltou nesses dias uma frase que se encaixa perfeitamente neste texto:
– Saudade é quando faz tempo que você não vê e fica tentando achar um jeito de chegar lá.