por Alexandre Ribeiro e Nayra Lays

 

 

Sankofas de Nayra Lays e Alexandre Ribeiro

A água morna cai, serena, nos cabelos lavados e desembaraçados com os dedos. Cantarolando “Olhos Coloridos”, desliga o chuveiro, observa fragmentos no espelho embaçado. Respira fundo. Tomada pelo cheiro do café da mãe, é guiada na pequena caixa de concreto alugada. Com o estômago revirado, anda entre lacunas de quem deveria ficar mais, mas tá indo trabalhar.

– Te amo, mãe. Vai com Deus.


 

Acostumado com a mazela de viver trancado dentro de si, já não consegue proferir nem uma palavra sequer. A solidão é sua companheira mais quente, consegue deixar o coração em ponto de evaporar qualquer lágrima.

– Alê, faz um favor para mim? Sobe no 1702 e leva esses sabonetes? E olha, por favor, tenta ser bem breve na comunicação com o hóspede, tá? Ele é muito importante para nós.

E foi assim que aprendeu a chorar por outras formas.


Anos atrás, todos os dias cedinho, via a avó amassar os cabelos que, na juventude, eram alisados e modelados com bobes. Terminadas as sessões de quimioterapia, via florescer cachos grisalhos e a eles dedicava cuidados especiais.
Faltava-lhe um dos seios.
Antes, a menina observara achando curioso. Depois, ficava espantada diante de tamanha naturalidade da avó em lidar com aquela visível ausência.
Banhos de porta aberta. Andanças despidas pela casa. Vestidos coloridos que mandava costurar ao seu próprio gosto.

Se fosse uma cor, vó Helena seria amarela.


Obrigação diária: beijar as testas, agradecer e ler cinco páginas.
Por ter sofrido de menos na máquina de moer pobre, a lata, mesmo que amassada, tem chance de virar arte. A palavra é uma oportunidade.

Falo oportunidade pela ciência do peso da palavra. Quem veio do chão de firma é exceção quando alça voos. Precisar escolher entre trabalho e satisfação é uma desoportunidade  –  e isso não é nada poético, é literal.
Subvertendo o fato do meu perfil não obter crédito pros bancos, cheguei até aqui com o crédito das ruas. Preto, maloqueiro, favelado e poeta. Sou exceção. Mas a exceção não chega só. Pretos morreram e morrerão até que nós viremos regra.

Dedicaria para Silvia também a cor amarela, pelo simples fato de amar, ela.


Agora, como quem aprende um ritual sagrado, são os dedos da neta que, com calma, soltam a raiz cacheada tocando o próprio couro cabeludo. Face e corpo nus, depara-se consigo mesma em mais uma manhã solitária. Seios, umbigo, barriga, pelos, estrias, pele. Percebe que cresceu, e todos os dias reprograma a mente para enfrentar as presentes ausências.

Ouviu dizer que o silêncio é uma prece. No silêncio interno, ora do próprio jeito pra que amor e orgulho por quem é sejam nutridos.
Há quem não saiba, mas ambos –  o amor e o orgulho interior  – são como crianças: precisam ser cuidados todos os dias, e pelo maior número de pessoas possível. Assim como em África.

Mulher, preta e favelada como as que a antecederam. Primeira poeta-cantante da família.


 

 

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