por Um Por Todos - Glauco Mattoso

 

Qual o momento mais propicio para um escriptor parar de escrever? Sei de
collegas que pararam por desencanto com a carreira ou pela adversa
incapacidade de continuar escrevendo, mas pessoalmente não conhesço
ninguem que se apposentasse da litteratura simplesmente por chegar à
conclusão de ja ter dado o recado e ter obtido retorno disso, quer
financeiro, quer publico, quer academico. Si algum houver, será ave
rara.

Fallo da apposentadoria creativa e não da bibliographia, claro, ja que a
gente sempre guarda ineditos na gaveta, que, posthumos ou não, podem
sahir a qualquer momento. Sempre apparescerá quem argumente que o
artista nunca perde o tesão nem a occasião de deixar mais uma obra
prompta. Não discuto a vocação nem a temptação. Fallo da determinação e
do determinismo. O adjectivo que quero analysar é MALDICTO.

No sentido lendario consagrado por Verlaine, maldicto é o poeta que,
incorrecto e incomprehendido em seu tempo, accabará resgatado pela
posteridade apoz uma vida libertina, libertaria, viciosa e até
criminosa, beirando a propria loucura. Na lingua franceza, Verlaine
mesmo se incluiu entre maldictos da turma de Rimbaud, Mallarmé,
Baudelaire, Apollinaire, Genet ou Villon, poetas ou prosadores. No
Brazil, o primeiro da turma seria Alvares de Azevedo.

Por extensão, a noção de maldicto se applica a quaesquer auctores
contraculturaes ou pornographicos que, em qualquer epocha, ultrapassam a
permissividade, taes como Jim Morrison ou Cazuza, Sade ou Masoch, Bocage
ou Boccaccio, alimentando o mytho dum automartyrio ou dum antiheroismo,
como si a biographia de cada um fosse sobrenaturalmente predestinada,
especie de "missão" terrena.

A maldicção litteraria não se confunde, portanto, com a marginalidade
sociocultural, tampouco com a independencia editorial ou com a
alternatividade jornalistica. A proposito, sou contemporaneo e confrade
daquella geração de poetas dictos marginaes que ja estão chegando à
Academia Brazileira de Lettras, opportunidade que, tudo indica, não me
será dada siquer na Academia Paulista. Em summa, o maldicto pouco tem a
ver com sua geração, com sua nacionalidade ou com sua lingua. O maldicto
pertence a uma categoria existencial que transcende a chronologia e que
talvez a espiritualidade, somente, possa explicar.

Sim, acho que me enquadro nessa galleria, independentemente do tamanho
da moldura ou da quotação mercadologica. Academicamente estudado como um
caso "queer", estou fora do canone. Numa enquete do CORREIO BRAZILIENSE
sobre os cincoenta principaes auctores brazileiros vivos na advaliação
da critica, logrei figurar na frente até do Chico Buarque e do Paulo
Coelho (risos), mas numa eventual pesquisa de mercado eu estaria
seguramente entre os cincoenta menos lidos ou publicados, ou seja,
virtualmente desconhescido. Ora, tal contradicção não se resolve numa
mesa de debatte ou numa these de doutorado. Resolve-se com a convicção
do proprio auctor sobre seu destino. São nossos proprios demonios, que
nos inspiraram, aquelles que illuminarão a pagina da agenda marcada na
data de encerrar o cumprimento da missão. Desse modo é que se resolve.

Eis que resolvi, à falta de momento mais opportuno, approveitar esta
ultima chronica da columna para me despedir da actividade artistica, ou
seja, para me apposentar da carreira. Parei de sonnetizar em 2012. Agora
paro de versejar e de prosear. Espero viver mais uns annos sem parar de
comer com gosto nem de ouvir o som que apprecio, affora a satisfacção de
outros prazeres sensoriaes. Quanto à percepção extrasensorial, esta
jamais deixarei de desfructar, visto que continuo bruxo até no Parnaso
de Alem Tumulo... Boas vibrações a todos! Vejo vocês em meus livros!
 

Veja também
Homenagem a Osman Lins, 2002 <br>
nanquim sobre papel, 152 x 280 cm <br>
Coleção Paulo de Tarso de Freitas Veloso

40 Anos da Morte de Osman Lins

O escritor José Luiz Passos e o pesquisador Francisco Rocha falam sobre o autor pernambucano, criador de Avalovara e Lisbela e o Prisioneiro