Por Duanne Ribeiro
"O escritor não é um homem destinado a evadir-se do mundo, e sim a mergulhar profundamente no mundo. Tem-se dificuldade em perceber que ele não é um ser feito de sonhos, incapaz de encarar decididamente a vida, mas exatamente o contrário: laboriosamente, através do exercício com as palavras, ele aprende a ver.”
Imersão na realidade, labor do dizer e educação da visão – a definição, parte de um dos textos publicados na antologia Do Ideal e da Glória: Problemas Inculturais Brasileiros, é perfeitamente aplicada ao seu autor, o contista, romancista, dramaturgo e ensaísta Osman Lins, cuja morte completa 40 anos em julho de 2018. O pernambucano, escritor de Avalovara, Nove, Novena e Lisbela e o Prisioneiro, entre outros, prezava pela inventividade das formas de expressão e se sabia parte de um debate cultural amplo que envolve a sociedade.
Para lembrar a data, conversamos com o escritor José Luiz Passos e com o pesquisador Francisco Rocha, que comentaram elementos da obra do homenageado. Passos, também pernambucano, fala do ponto de vista de quem tem Osman como referência em seu trabalho literário – dedicou a ele o seu penúltimo romance, O Marechal de Costas (2016), e, em Nosso Grão Mais Fino (2009), diz que adotou “o tom lírico, próximo ao da prosa poética, que encontro na fase madura dele, a partir de Nove, Novena principalmente”. Já Francisco Rocha é o responsável pelo estabelecimento de texto de A Cabeça Levada em Triunfo, obra osmaniana ainda inédita.
Como inventar uma história?
“Vejo em Osman”, diz Passos, “uma tentativa crescente de pesquisa na renovação da expressão narrativa. Do primeiro ao último livro, ele praticamente não repete nenhuma fórmula ou marco narrativo, adotando sempre uma nova situação ou ponto de vista para o narrador ou para as vozes que participam na obra”. Essa postura inventiva, porém, não se reduz a uma vontade de experimentar, Passos acrescenta: “A inventividade é crucial. Mas a questão é como ‘inventar’ uma forma para contar uma história ‘inventada’ que seja, também, interessante e relevante para o leitor. E Osman alcança esse difícil equilíbrio como poucos autores de sua geração. Acho que essa é a grande lição que ele dá aos narradores contemporâneos”.
Um exemplo dessa investigação é o romance Avalovara, que é todo estruturado de acordo com o palíndromo – frase que se lê igualmente em direções diferentes – chamado Quadrado Sator:
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
Nessa composição, a mesma frase – SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que pode ser traduzida como “o criador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita” – é lida seguindo a vertical ou a horizontal, de cima para baixo e de baixo para cima. A história de Avalovara prossegue de acordo com o movimento de uma espiral sobre o Quadrado Sator: a cada letra Osman atribuiu uma seção narrativa; esses setores surgem, se intercalam, voltam, são finalizados.
“Existe uma lucidez da forma, em Osman, que é ao mesmo tempo transparente (porque se percebe o contorno da forma) e envolvente (porque não aliena o leitor e contribui para o efeito do enredo)”, explica Passos. Nesse sentido, Rocha diz: “Osman pode servir de modelo de invenção compositiva e virtuosismo estilístico, sem falar da profundidade filosófica da sua narrativa”.
Obra inédita
A Cabeça Levada em Triunfo e Noite Profunda/Os Espelhos são romances de Osman Lins que aguardam publicação. O segundo é um trabalho de início de carreira, produzido entre 1945 e 1953, que está em estabelecimento de texto por parte do pesquisador Eder Rodrigues Pereira. Já o primeiro, estabelecido por Francisco Rocha, foi interrompido por ocasião da morte do autor, estando em cerca de 70% de completude. “Osman chegou a revisar o que escrevera, embora não se possa afirmar que não faria mais modificações”, diz Rocha.
Além disso, conta ele que “há um plano da obra, que por si só é um exercício de estilo. A ideia, inclusive, é publicar o texto do romance junto com o plano, uma vez que neste Osman prevê os possíveis desfechos da narrativa”. A Cabeça Levada em Triunfo, de acordo com o pesquisador, se assemelha a O Fiel e a Pedra (1961) – em ambos, Osman trabalha o regionalismo, de tal modo que consegue apresentar “dualidades de ordem moral e metafísica”.
Quanto a essas dualidades, explica: “No caso de O Fiel e a Pedra, os termos do título, encarnados respectivamente nos personagens Bernardo e Nestor, designam forças contrárias: Bernardo expressa o equilíbrio, a justiça, a integridade, o amor, o bem; Nestor, a presunção, a vingança, o engodo, o ódio, o mal. Em A Cabeça Levada em Triunfo, a intriga é realizada segundo um aspecto ‘mítico’, que se evidencia no título provisório da obra, A Cabeça e o Corpo. Se o romance fica conhecido pelo primeiro título, no segundo estão sintetizados seu conteúdo, sua forma e o processo criativo que o instaurou – em parte, racional, em parte, instintivo, cego”.
Na revista Eutomia, Rocha publicou alguns trechos de A Cabeça Levada em Triunfo.
Outros conteúdos
Para concluir, destacamos alguns materiais sobre Osman Lins disponíveis on-line:
– “Seu Pai”, crônica de José Luiz Passos sobre a correspondência de Osman Lins com suas filhas, publicada pela revista Continente. Assista também a conversa do autor com as herdeiras.
– Três Romances em Interseção: a Matemática na Prosa Brasileira Contemporânea, artigo de Jacques Fux e Agnes Rissard sobre Avalovara e também Ribamar, de José Castello.
– Uma Obra em Movimento: Leitura(s) de Avalovara, de Osman Lins, tese de doutorado de Regina Dalcastagnè, uma das grandes especialistas no autor.