O poder do artista ante a memória de crimes sob a ditadura
03/12/2018 - 09:00
por Encontro com Espectadores – Valmir Santos
No livro O Teatro É Necessário?, o professor francês Denis Guénoun especula: “A que necessidades responde (eventualmente) o teatro? A necessidades de que e de quem? Ou ainda, como diz Nietzsche: de que em quem?”. A publicação de 1997 lança perguntas que possivelmente jamais serão respondidas, em essência, mas são produtivas pelo contínuo convite a pensar e a agir – afinal, o teatro responde a instâncias fora dele.
A montagem brasileira da peça chilena Villa levou o engenheiro eletricista argentino Hugo Alabi, de 70 anos, a assistir ao trabalho durante sua temporada – recém-encerrada – no Sesc Pinheiros, bairro onde vive, e a emendar presença no Encontro com o Espectador realizado no último domingo de novembro, dia 25, na Sala Vermelha do Itaú Cultural.
Militante estudantil na província argentina de Córdoba no início da década de 1970 e radicado em São Paulo desde 1974, como reflexo do regime autoritário prestes a ser instituído em seu país por meio de um golpe militar (1976-1983), Alabi viu na dramaturgia centrada nos crimes de lesa-humanidade na experiência do Chile (1973-1990) ecos da sua juventude de resistência e da história de outros estudantes e movimentos sociais em nações vizinhas, como o Brasil (1964-1985).
Inspirado em fatos históricos, o autor Guillermo Calderón elabora ficcionalmente o embate de três arquitetas escaladas para deliberar acerca do destino de uma área semidestruída em Santiago (Chile), que ficou conhecida como Villa Grimaldi e se tornou um parque por la paz, como se diz naquela acepção urbanística.
Hoje declarado monumento nacional, o local funcionou como um dos mais ativos centros de tortura e extermínio de cidadãos e militares oponentes à ditadura instaurada após o golpe comandado pelo general Augusto Pinochet (1915-2006) e vigente por 17 anos, até o restabelecimento da democracia após decisão dos eleitores em plebiscito.
Reconstruir? Erguer um museu ultramoderno? Ou deixar como está, nivelando o terreno e plantando grama de ponta a ponta? Por trás de questionamentos como esses, o diálogo traz à tona o trauma coletivo enfrentado pelo povo chileno e suas sequelas sobre as trajetórias pessoais, como nos relatos das mulheres que discutem ao redor de uma mesa.
A atriz Rita Pisano e o diretor Diego Moschkovich compartilharam suas inquietudes diante da obra e discutiram o sincronismo com o momento político brasileiro de ruptura após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, articulado como um golpe parlamentar e seus ditames jurídicos.
Em 2011, quando estreou, a montagem original de Villa teve temporada em espaços de memória da ditadura chilena. E fazia dobradinha com uma segunda peça de Calderón, Discurso, em que o dramaturgo imagina a fala de transmissão da faixa pela presidenta chilena Michelle Bachelet após sua primeira gestão.
A versão de Moschkovich – é a terceira vez que ele monta um texto do mesmo autor – estreou a três dias do segundo turno das eleições presidenciais, de 28 de outubro, e inevitavelmente trazia em sua concepção pontos convergentes de ambas as governantes identificadas com o campo progressista na política. Foi a primeira vez, por exemplo, que uma mulher ocupou o cargo máximo das estruturas de poder em seu respectivo país. Pioneirismo bastante saudado – vide o machismo e o patriarcalismo latino-americanos arraigados –, o que tampouco impediu que houvesse frustrações da esquerda e da direita.
Segundo a mediadora do Encontro com o Espectador, a jornalista e crítica Beth Néspoli, os artistas de Villa (também estão em cena as atrizes Flávia Strongolli e Angela Ribeiro) contribuem para que sociedades afetadas por traumas coletivos brutais, como os da narrativa, busquem estratégias de profilaxia para dimensionar essa memória e não sucumbir a forças obscurantistas que insistem em ignorar os fatos e, pior, em apagá-los.
Para Rita, a arte é capaz de conjugar tal postura reavivando a memória com distanciamento. Brotaria daí a margem poética. Moschkovich complementou que “a arte pela arte não produz resistência alguma” e que é preciso “fazer essa negociação, abrir horizontes de pensamentos”. Segundo o diretor, estudioso do legado do teatrólogo russo Constantin Stanislavski (1863-1938), os artistas cênicos da sua geração (ele nasceu em 1985, ano final da ditadura brasileira) e das gerações mais recentes teriam perdido a interlocução com o público.
Na percepção do engenheiro argentino citado no início deste artigo, trata-se de um ponto pacífico: “A solução é pela arte, não pela violência”, afirmou Alabi. Em seguida, a paisagista e também espectadora Meg Castrezana pediu a palavra para rememorar os golpes de cassetete dos quais ela e demais integrantes de seu grupo teatral foram vítimas – por parte de agentes da repressão em Mogi das Cruzes (SP) na década de 1980 – quando defendiam o direito à arte e à cultura.
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Essa foi a 26ª edição do Encontro com o Espectador. A realização do site Teatrojornal – Leituras de Cena e o apoio do Itaú Cultural possibilitaram dez debates neste ano, entre março e novembro (houve duas edições em maio, excepcionalmente). E esta coluna procurou catalisar cada um desses eventos.
Sempre esteve em pauta um espetáculo previamente anunciado para que as pessoas pudessem conferi-lo em temporada e, eventualmente, se sentir motivadas a compartilhar da reflexão conjunta a cada derradeiro domingo do mês. Lembramos que a ação acontece desde junho de 2016 e foi originalmente abrigada no Ágora Teatro durante um ano e meio de parceria.
Nosso desejo permanente é estimular o público – sobretudo aquele pouco familiarizado – a entrar em contato com as ideias e as motivações dos artistas, assim como com os discursos de jornalistas, pesquisadores e criadores na recepção crítica às obras.