por Heloísa Iaconis

Quando pequena, dotada do puro saber dos 6 anos, desenhou um homem-palito. Vestiu uma roupinha nele, blusa e calça, e entusiasmou-se com o próprio traço. É esse maravilhamento que desde então acompanha Eva Furnari, que costuma perceber cada coisa por meio do figurado. Felpo Filva, o coelho poeta, Lolo Barnabé, o inventor acidental, e Pandolfo Bereba, o príncipe que lista os defeitos alheios, surgiram com outros personagens do olhar criativo da autora, dona de uma narrativa ritmada e cheia de graça – zigue-zague harmônico de palavras e ilustrações.

Eva nasceu em Roma, capital italiana, em 1948, mas aos 2 anos desembarcou no  Brasil. Em 1976, formou-se em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP) e, de 1974 a 1979, foi professora de artes no Museu Lasar Segall. Estreou na literatura em 1980, com a coleção de histórias visuais Peixe Vivo, e na mesma época colaborou no suplemento infantil da Folha de S.Paulo, com as tirinhas da Bruxinha. Com mais de 60 títulos publicados, prêmios vários e mil ideias, a escritora e desenhista sente que ainda há muitas linhas por compor.

As inventividades e as feitiçarias de Trudi, Kiki e companhia preenchem os fins de semana de setembro no Cantinho da Leitura do Itaú Cultural. Eva Furnari é o destaque do mês e, em uma conversa, toca em assuntos que são a sua alquimia, da literatura ao vínculo com educadores.

A leitura estava presente em sua infância? Se sim, de quais maneiras?
Estava sim, na medida em que a minha mãe contava histórias para mim. Eu tinha 8 graus de hipermetropia e uma dificuldade tamanha para ler. Porém, lia, lia pouco. Como a minha família é estrangeira, não comecei com Monteiro Lobato, e sim com Hans Christian Andersen. Tínhamos também o costume de ler em voz alta. 

Como se deu o seu contato com a ilustração?
Um avô meu, que não conheci, era pintor. A minha mãe desenhava bem, apesar de não desenhar sempre. Então, eu já tinha uma tendência natural. Outro ponto: alguns livros que tive na infância traziam ilustrações tão bonitas. Além disso, tenho uma relação estética com o entorno, uma conexão com a linguagem, com o movimento facial das pessoas. Esses elementos se refletem no meu desenho.
 

Personagens, personagens | foto: Site Eva Furnari


E com a literatura? Quando e de qual forma você se tornou escritora?
Cursei arquitetura e, na faculdade, acabei me envolvendo com as artes plásticas – com uma turma, fiz alguns livretos, sequências de desenhos, brincadeiras que, às vezes, a gente até imprimia na gráfica universitária. Nesse período principiei pelas narrativas – visuais e não direcionadas para crianças. O meu trabalho de conclusão de curso foi sobre livros infantis, aliás. Quando saí do Museu Lasar Segall, já com uma filha pequena, achei que poderia ser interessante trabalhar com livros. No entanto, mal sabia o que são direitos autorais. Passei a procurar editoras em listas telefônicas até que soube que a Ática estava aberta a estreantes. Apresentei um projeto de quatro livros visuais a eles, que gostaram e publicaram. A partir dessa coleção entrei no meio editorial. O meu percurso foi consequência do próprio trabalho. Durante dez anos fiz histórias sem textos escritos e ilustrei enredos de outros autores. Em 1994, lancei a primeira trama intrincada: A Bruxa Zelda e os 80 Docinhos.

O que é literatura para você?
Uma manifestação humana de expressão que encaixo como sendo uma manifestação artística. Obviamente que, nesse conjunto, existem qualidades diversas. Mas é um veículo de experiências. A literatura possui o papel de refletir não só o inconsciente coletivo, como também o inconsciente pessoal, as organizações da psique. O entendimento da vida humana, dos relacionamentos, os significados e as complexidades dos nossos conflitos são matéria de um espaço de liberdade, de troca, que não está atrelado, necessariamente, à venda de algum produto. A arte literária está fora do eixo comercial – não o livro, o conteúdo.

Laboratório do professor Bóris | foto: Site Eva Furnari

Em sua opinião, existe literatura infantojuvenil ou literatura é um todo único?
A criança tem uma barreira de habilidade e de conhecimento; o jovem, em parte, também. O que posso dizer é que há livros infantis que os adultos podem ler. No entanto, alguém de 7 anos não pode ler Dostoiévski, digamos assim. Existe essa limitação de experiências para entender, por exemplo, um texto de Machado de Assis. Entretanto, considero ambas, tanto a literatura infantojuvenil quanto a adulta, manifestações artísticas de valor. Elas carregam aspectos estruturais diferentes: a primeira apresenta desenhos, pois a criança conhece a ilustração antes de dominar os códigos da escrita. O vocabulário e a complexidade precisam ser adequados. Os assuntos, porém, podem ser variados, inclusive os que não são leves, como a morte. Tudo depende do modo como esses temas são abordados: é mais uma questão de linguagem do que de conteúdo.

Ao escrever, você pensa no leitor? Ou vai por um percurso livre de preocupações com o público?
Há as limitações do leitor infantil e do juvenil. Contudo, não penso, logicamente, nisso quando escrevo, senão o trabalho fica racional demais. À medida que me aprofundo na minha pessoa, consigo chegar ao outro. A via não é direta. E é sempre de um modo mais intuitivo, meio misterioso, uma percepção sutil do que ali é verdadeiro, do que não é. O farol sou eu mesma, apesar de ter conhecimento acerca da limitação da linguagem, de questões educacionais – que não chegam a ser pedagógicas – e éticas – que carrego, naturalmente, em minha vida particular.
 

A personagem Bruxinha | foto: Site Eva Furnari

A sua obra é vasta. De onde vêm tantas histórias?
Difícil essa pergunta. Existe um traço de personalidade: sou introspectiva, vivo nesse mundo interior mais do que no exterior, disponho de um processo de reflexão e imaginação, fico bem comigo mesma. Olho para alguma coisa e já a vejo simbolicamente. Por exemplo, quando rompeu a barreira de Mariana, em Minas Gerais, a lama invadiu, para mim, simbolicamente, aquilo que estava ligado ao Brasil como um todo. Faço esses paralelos de um jeito involuntário. E também acho que criar histórias é uma maneira de tornar a existência mais divertida, de preenchê-la. Como se tivesse uma criança dentro de mim.

O que é escrever?
É algo que faz parte de mim. Escrever me ocupa o tempo inteiro, não importa se é sábado ou domingo. Esse métier, essa profissão é uma sorte que tenho – e ela me traz sentido, muito prazer e sofrimento (a folha em branco, a resolução de uma frase ruim). Compartilho as minhas visões, as minhas brincadeiras, os meus jogos, os meus humores – e isso me norteia, é central.
 

Enquanto espera a comida em um restaurante, Eva desenha em um papel | foto: Site Eva Furnari


E desenhar, o que significa?
É uma grande diversão. Escrevo cada vez mais e desenho um pouco menos, depende da época. A ilustração vai além do desenho: há o conhecimento do personagem, o que é divertido e surpreendente. Trata-se de uma busca pelo novo. Agora, há um mistério em desenhar: faço isso, mas não sei como faço. Há sempre o mistério.

O que os prêmios representam para você?
Os prêmios são ótimos, porque refletem um reconhecimento que parte também do público. Eu me tornei mais segura devido a esse retorno: sei que estou no caminho certo. O momento da criação é muito vago. Saber que consigo me comunicar com o outro faz com que eu perceba que todo o meu empenho vale a pena.
 

Ateliê da autora | foto: Site Eva Furnari

Se pudesse escolher um momento de sua trajetória profissional, qual seria o selecionado?Dois livros meus são significativos para mim: Os Problemas da Família Gorgonzola (2001), uma obra na qual consegui alcançar uma espontaneidade que as crianças têm ao copiar os meus traços e ao fazer desenhos melhores do que os meus. O outro é o único que não fui eu quem ilustrou: Amarílis (2013), do qual gosto do texto, um texto que me emociona. Ao lê-lo, até hoje choro, mas não sei o porquê. Fora esses títulos marcantes, sou muito agradecida por tudo que recebo dos leitores e dos professores. Com os educadores mantenho uma parceria espontânea: os meus livros estão por aí devido a eles, com quem me identifico e me solidarizo.

A magia é importante para a criança? E para o adulto?
Creio que existem aqueles que entram nesse universo e aqueles que não entram. Nada tem a ver com o valor da pessoa. O faz de conta é importante para a criança. Ao simbolizar, o inconsciente manifesta-se. O ser humano que não consegue simbolizar se desequilibra psiquicamente. Quem simboliza a morte, o matar alguém, todas as demandas a respeito da sobrevivência, possui o inconsciente mais preparado para distinguir a ficção da realidade. Os trabalhos de Jung e de Nise da Silveira vão por esse rumo. Acho que a magia é, fundamentalmente, a capacidade de transformação – da mais simples, do Harry Potter, até ir para além do rotineiro, vislumbrar uma transcendência, um caminho para a espiritualidade. Para o adulto, há a turma da magia e o grupo da não magia. Para quem almeja ser maior do que acordar-trabalhar-dormir, a magia é necessária como comida.
 

Meninas humanas, meninas bruxas | foto: Site Eva Furnari

 

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