por Mayra Fonseca

 

Por que eu vou ficar aqui?
Quem vai dormir no quarto comigo?

A menina Maria (nome fictício) perguntou à psicóloga Flávia Blikstein, que a acompanhava durante sua primeira internação

As perguntas ditas pela criança no trajeto para o seu novo endereço naquela noite são também as questões que fomentam o encontro do Brechas Urbanas em novembro: o que é loucura e como ela deve ser tratada? Por que excluir do convívio social alguém com doenças mentais? Quem são as pessoas internadas em clínicas e manicômios no Brasil?

Obra de Carlos Pertuis, artista do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira | divulgação

Afetada pelas perguntas simples e diretas de Maria, a psicóloga e pesquisadora Flávia Blikstein decidiu correr atrás das respostas: iniciou uma investigação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) que aponta as responsabilidades da sociedade na “fabricação de crianças loucas”.

Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), todas as crianças, sem exceção, têm direito à convivência familiar. A internação deveria ser a última opção e somente em casos em que foram esgotadas todas as alternativas principais, conforme orientação da reforma psiquiátrica de 2001: deve ser priorizado o atendimento em redes, em serviços inseridos na comunidade, próximos à família. Diante desses fatos, Flávia conclui que não existem motivos concretos para a internação de uma criança por problemas mentais. Para ela, assim são fabricadas as “crianças loucas”: a sociedade as coloca em uma situação de extrema vulnerabilidade e de maior sofrimento com a internação, produzindo quadros ainda mais crônicos do que os iniciais.

Ao final de sua pesquisa, ela conseguiu formular duas respostas para Maria:

Uma criança é internada quando as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades. Estão em manicômios no Brasil as crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Resultados da pesquisa da psicóloga Flávia Blikstein sobre a internação de crianças com doenças mentais

Obra de Carlos Pertuis, artista do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira | divulgação

Mas o que é, então, a loucura? Em seu livro Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão, o filósofo Peter Pál Pelbart lembra: “A loucura do louco passou a ser considerada como a loucura do homem em geral”, unindo o que há de mais primitivo e de mais decadente no ser humano. De um lado, com a involução da civilização e do indivíduo sendo uma espécie de infância psicológica. De outro lado, um estágio terminal da existência marcado pelos males e pelos excessos da civilização.

“Através da loucura (e por intermédio de seu significado) o homem contradiz sua realidade bruta e imediata, transcendendo-a.

Faz parte da loucura, porém, não só a distância entre o real e o imaginário (não tomo essas palavras no sentido lacaniano, obviamente), entre o ser bruto e a vivência imaginada, mas também uma outra distância, entre a consciência da realidade e a subjetividade imaginária.

Há um real, um imaginário e um consciente. A loucura transcende o primeiro e se instala entre os dois últimos. Ela é prova da transcendência do homem em relação ao seu ser bruto, mas é também prova da transcendência de sua consciência em relação a essa imaginação.”

Peter Pál Pelbart, em seu livro Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão

Obra de Carlos Pertuis, artista do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira | divulgação

Ao transcender a realidade, a loucura se faz próxima da arte – como no grupo Trem Tan Tan, fundado pelo artista paraibano Babilak Bah, que hoje reside em Belo Horizonte (MG). O projeto musical com portadores de sofrimento psíquico foi criado em 2002 e desde então é plataforma de expressão para poesias e denúncias de preconceito.

O trabalho está atrelado à ação da prefeitura de Belo Horizonte e propõe a inserção social, a busca de cidadania e o tratamento em liberdade e em rede como substituição aos manicômios.

Obra de Carlos Pertuis, artista do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira | divulgação

A arte e o afeto como disparadores de melhor qualidade de vida também estão por trás do reconhecido trabalho de Nise da Silveira no centro psiquiátrico Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Em sua visão, animais são como terapeutas, e o contato com materiais é algo que pode favorecer o ambiente propício para a criatividade e para a tradução de sentimentos.

Para doentes mentais, traduzir as profundezas de seu ser em cores e formas pode ser, como para outros artistas, mais natural do que lidar com as palavras: delírios e histórias são muitas vezes esboçados em imagens.

Foi assim com o carioca Carlos Pertuis, nascido em 1910 e paciente de Nise: ele era sapateiro quando começou a ter visões do que acreditava ser o “planetário de Deus”. Internado, foi no ateliê fundado por Nise que ele se sentiu à vontade para mostrar os desenhos que fazia e guardava em caixas de sapato. E foi também nesse ambiente que se sentiu acolhido para evoluir sua produção para mais de 21 mil peças.

Um dos artistas que fazem parte da história do Museu de Imagens do Inconsciente (MII), Carlos Pertuis tem no seu acervo grande contribuição para um novo olhar sobre o valor da convivência e do estímulo afetuoso ao cotidiano de pessoas com sofrimento psíquico. Ao tratarmos a loucura como responsabilidade de todos, podemos também compartilhar nossas sensibilidades.

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