Noite dos Tambores | Entrevista
27/12/2016 - 16:10
O produtor cultural Euller Alves fala sobre algumas atividades realizadas pelo grupo Umoja na zona sul de São Paulo e sobre desafios da gestão cultural. Comenta também a sustentabilidade tanto do grupo quanto da Noite dos Tambores, evento que acontece anualmente desde 2010 e que abrange uma significativa diversidade rítmica.
Euller Alves é arte-educador, ator, percussionista e dançarino afro. Atua como fomentador cultural na região do M'Boi Mirim, na zona sul de São Paulo, há 20 anos. É coordenador do grupo Umoja e trabalha com dramaturgia, cultura religiosa e musicalidade afro-brasileiras.
Leia a entrevista e conheça a programação da Noite dos Tambores.
Euller Alves
(Foto: Lente Suja)
Como surgiu o coletivo Umoja e que atividades o grupo desenvolve na zona sul de São Paulo?
O grupo surgiu em 2007. A maior parte dos integrantes atuais já se conhecia de outros trabalhos artísticos na zona sul. Quando nos juntamos para pensar um nome, apareceu em nossas mãos o livro Os Sete Novelos, sobre o Kwanzaa [festividade afro-americana que ocorre entre 26 de dezembro e 1º de janeiro]. Umoja é um dos sete princípios dessa celebração, e no dialeto africano suaíli significa unidade, união.
O termo "umoja" foi escolhido por fazer referência às nossas origens africanas e por expressar exatamente o que buscamos como grupo artístico e cidadãos de um país que, por um lado, ao longo da sua história, sempre exaltou a democracia racial e, por outro, sempre negou a cultura negra como herdeira do circuito atlântico entre África e Brasil.
Na região nossas atividades têm sido poucas. Ensaiamos uma vez por semana; a maioria dos integrantes é formada por educadores, dá oficinas em ONGs e espaços culturais. Outras vezes nos apresentamos em escolas e saraus aqui por perto. Entre abril e o final de maio estamos mergulhados nas ações do projeto Noite dos Tambores. Entre outubro e o final de novembro surge o maior número de convites para fazer shows, por causa do mês da consciência negra.
Como funciona a gestão e quais são os principais desafios para a sustentabilidade do coletivo?
Eu faço a produção mais burocrática, de reunir documentação e fechar contratos e agenda, quando há. O Rabi [Everton Alves] faz a produção musical, a Débora Marçal cuida dos figurinos – elaboração e confecção – e a Alânia Cerqueira faz a produção-executiva. Pagamos as despesas de compra, manutenção dos instrumentos e figurinos sempre com recursos dos cachês, e o que sobra disso é dividido com quem vai ao show.
Como não temos ganho fixo, dependemos de outras fontes de renda, nos mantemos pela vontade, pela aptidão e pela consciência da causa.
Como o coletivo se relaciona com as políticas públicas da região? E com os moradores do entorno?
Na região as políticas que chegam são os programas da prefeitura, como Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) e Fomento ao Teatro e à Dança. Hoje não temos nenhum desses programas conosco; já fomos contemplados com um VAI em 2014, mas alguns parceiros que têm esses incentivos por vezes nos chamam para uma apresentação ou uma ação conjunta, como aulas e formações.
O nosso entorno é composto de três comunidades: Jardim Ibirapuera, Favela da Erundina e Jardim da Felicidade, que fazem parte da macrorregião do Jardim São Luís. As atividades que desenvolvemos, como as oficinas de percussão e danças afro-brasileiras, são abertas – recebemos pessoas de outros lugares. Aqui na nossa quebrada, percebemos que os jovens têm mais interesse por essas ações.
Noite dos Tambores
(Foto: Daniel Fagundes)
Como o Umoja dialoga com os outros coletivos artísticos existentes na região? Vocês desenvolvem atividades conjuntas?
Os coletivos mais ativos, como os saraus, sempre nos convidam para compartilhar nossas ações – aulas sobre a temática negra, palestras, oficinas de dança e percussão, participação em shows. Vamos de forma voluntária ou remunerada. Por aqui, a maioria dos coletivos procura trabalhar dentro da nossa rede, e nós colaboramos por acreditarmos que aí residem a força e a resistência da periferia.
Como surgiu a ideia da Noite dos Tambores?
Esse sempre foi um sonho do Umoja – em nossas conversas o assunto estava sempre presente: juntar tambores de diversos lugares. No começo dos anos 2000, desenvolvemos um projeto chamado Panelafro na Casa de Cultura do M’Boi Mirim. Lá juntávamos grupos diversos, sem foco específico. Com a nossa saída da casa, a vontade de fazer o evento foi tomando corpo.
Em 2010 levamos a proposta ao Sesc Santo Amaro, que na época era uma unidade provisória. O Sesc topou dar apoio e no ano seguinte conseguimos realizar a primeira edição. Os grupos convidados foram daqui mesmo da cidade e da região. Nas [edições] seguintes, procuramos outras parcerias. Estamos aos poucos solidificando o projeto na cidade, e o sonho agora é realizar uma em cada estado.
Como funcionam a organização e a gestão dos recursos e como é pensada a programação do evento?
Desde o começo todo o grupo está envolvido na produção e na organização, e conosco estão outros parceiros, como o professor doutor Salloma Salomão, que fez toda a pesquisa sobre as origens e os significados dos tambores que temos catalogados; o Mestre Poeira, lutier do Instituto Tambor que dá forma aos tambores; Rogério Pixote, cineasta do Cine Becos; e Guma, fotógrafo. Esse povo veio fazer o projeto sem ganhar um tostão e usando os equipamentos que já possuía. Hoje a equipe é bem maior e tenho de citar todxs: Alan Bernardino, Flavia Rosa, Debora Marçal, Everton (Rabi), Elessandre Sales (Alemão), Kauan Guilherme, Priscila Obaci, Carol Ewaci, Rose Eloy, Fernanda Santana, Lisandra Borges, Renato Almeida (produção), Alânia Cerqueira (produção-executiva), André Nakran (programação web); Rodrigo Kenan (design), Luciano Gomes (cenário), Maitê Freitas (assessoria de imprensa, comunicação), Edson Rodrigues (logística) e Diane Padial (elaboração de projetos).
O maior volume de recursos que tivemos foi um edital do Programa de Ação Cultural [Proac] em 2015. Algumas vezes, o projeto Noite dos Tambores recebeu aporte por parte da Secretaria Municipal de Cultura. Os outros recursos são geralmente das apresentações que realizamos no Sesc, por exemplo.
Hoje procuramos grupos com sons exclusivamente feitos com tambores, essa é a premissa, e nossos esforços são para ter a presença desses músicos – óbvio que nem sempre conseguimos, pois estão ficando cada vez mais distantes.
Noite dos Tambores
(Foto: Guma)
No processo de pensar essa programação, existe a preocupação em contemplar grupos que trabalham certas temáticas (gênero, racismo, desigualdade racial)?
Sim, trabalhamos por temáticas e diversidade; toda nossa ação no projeto da Noite dos Tambores é sempre pensada para fortalecer nossas lutas. Já tivemos grupos com tambores japoneses, árabes, cubanos, escoceses, marciais, mas a maioria trabalha as culturas negras.
Quanto a gênero, ainda é surpresa para muitos ver uma mulher tocando tambor. Fomos buscar nas nossas possibilidades grupos e coletivos formados por mulheres ou que tenham a mulher como condutora. Já vieram a banda Didá, de Salvador, na Bahia, o grupo Ilú Obá de Mim, de São Paulo – grupos conduzidos e tocados só por mulheres – e a Congada de Santa Ifigênia, que tem a primeira mulher a comandar uma manifestação cultural desse tipo. Enfim, estamos sempre atentos e dispostos.
Na programação da Noite dos Tambores há oficinas, saraus, cortejos, apresentações etc. Existe algum público específico? Ou o evento acaba atraindo pessoas que estão tendo um primeiro contato com os instrumentos de percussão, com estilos rítmicos diferentes?
A programação tem ao menos 20 dias. Visitamos os parceiros dos saraus e fazemos cortejos nas ruas e nos terminais urbanos, para onde, em parceria com a SPTrans, levamos [tambores] e [os] deixamos lá por um tempo, para que as pessoas toquem voluntariamente. Se tem piano, pode também ter tambor. Funcionou muito – as pessoas se surpreendem com os instrumentos e são atraídas. É muito boa essa experiência, o querer tocar o tambor é um impulso, imagine!
Não há público específico; procuramos atrair desde as crianças até os mais idosos. As oficinas de construção de tambores, percussão corporal e instrumental com vários ritmos têm atraído um público bem diverso.
Do seu ponto de vista como produtor, como as políticas culturais se relacionam com projetos como essa iniciativa? Elas são suficientes?
Efetivamente não há relação, e o motivo é simples: não temos representatividade nos conselhos, comitês ou julgadores que escolhem os projetos. Em todos os editais, políticas públicas ou programas que conheço, nenhum tem uma cota definida ou obrigatória. Quando você olha a relação de projetos contemplados pela Lei Rouanet, por exemplo, desde 1991, quando foi criada, são raríssimos os financiamentos a projetos como o nosso ou realizados por negros ou com a temática negra. Quando encontramos, é algo promovido por estatais.
Permanece o preconceito de que o investimento não tem retorno quando o projeto é de preto – quando na verdade somos nós que consumimos grande parte de tudo que é produzido neste país –, então ficamos à mercê do que sobra ou do que nos é dado como caridade. Há uma mudança no horizonte que é a implantação do Procultura, um novo marco regulatório que substituirá a Lei Rouanet e que pretende tornar mais igualitária a distribuição dos recursos. Mesmo assim, na nova lei não tem nada sobre recorte racial ou cotas. No último ano tivemos aprovada uma lei municipal em São Paulo chamada Fomento à Periferia, porém o fato de ser destinada à periferia por si só não garante que sejamos representados. As nossas lutas para ter representatividade ou espaço nas políticas públicas são incessantes.