por Diane Lima

Haveria muitos começos para mergulhar em uma conversa sobre memória e fotografia. A princípio, pensei em retomar uma reflexão que iniciei certa vez sobre a relação intrínseca do surgimento da fotografia com as ciências e disciplinas coloniais – por exemplo, a etnografia e a antropologia e como vem se reproduzindo, na produção da fotografia contemporânea como forma, tal modelo de pensamento. 

Na época, articulei a crítica como um diagnóstico dos trabalhos com que fui me deparando nos principais eventos de fotografia do Brasil, que, como se sabe, são um meio massivamente cis-heteronormativo, sexista e autocentrado. Neles, o que aparecia como constância e não me parece cessar ainda hoje como força expansiva – tal como a própria colonialidade – é a constatação de que diversas imagens, sedutoras por investimento, em detrimento de justificativas em torno da visibilidade de certos corpos ou contextos socioeconômicos, continuam a fracassar na tentativa de esconder a obscenidade sobre o desejo de dominar territorialmente o espaço e suas gentes, explorando-os e desbravando-os quanto mais suas "falo-lentes" possam alcançar. Práticas que, ao ancorar-se na captura do outro, revelam na plasticidade de suas imagens seu fundamento ontológico moderno-colonial. 

Penso que um segundo ponto importante dessa crítica a certo modo de fazer fotografia no Brasil, e que gostaria de deixar aqui como reflexão no dia em que se celebra a origem de sua invenção, é o fato de ela não poder ser reduzida a um julgamento sobre ser bom ou ruim, bonito ou feio, pois tais colocações não passariam de distrações para nos ocupar daquilo que essas imagens tentam representar, camuflando o que de fato nos importa, que é o debate sobre a vulgaridade e a violência de seus procedimentos e suas infraestruturas.

A essência da expedição fotográfica, sua intimidade com a antropologia no século XIX (como bem lembrou Hélio Menezes no calor dessa discussão), com o princípio da coleta, hierarquização e categorização; com o domínio das cenas e dos tipos, bem como do próprio desenvolvimento tecnológico dos equipamentos fotográficos, desde os daguerreótipos até aqui, mantém como estrutura de pensamento os mesmos princípios enciclopédicos, de marcação e remarcação, que vemos ganhar forma em incontáveis trabalhos expostos não por acaso com louvor e alto valor, nos seus correspondentes espaciais, as galerias, os espaços expositivos e os museus. Sobre isso, a afirmação de Seloua Luste Boulbina permanece sendo preciosa quando diz que “o aspecto colonial da fotografia é tanto que, mais tarde, alguns, em suas descobertas antropológicas, dissimularão seu uso[1]".

Passado um ano desses primeiros escritos – que reclamavam a urgência de nos dessubjetivarmos em relação a técnica, forma e linguagem –, em vez de me adensar numa reflexão mais revisionista ou da ordem da denúncia, optei por pensar nos fluxos de memória fotográfica de gente que está a performar um ajuste no foco da lente a partir de nossas perspectivas. Mas, para fazê-lo, a pergunta que me lancei foi sobre como seria possível ver pelas lentes de alguém que habita um espaço e um tempo histórico distintos dos meus. Questão que parte do meu desejo de produzir diálogos curatoriais que desestabilizem as narrativas visuais no campo da arte contemporânea, ao passo que as descentraliza sobretudo em termos temporais e geopolíticos, de modo a expandir as economias de acesso e pensar políticas de redistribuição para colegas artistas e curadores. 

Por isso, fiquei curiosa sobre o que seria parar aqui nesta balaustrada para um ver compartilhado da imagens feitas a partir da Baía de Todos os Santos, lugar do qual fiquei com esparsos registros ao longo dos últimos seis anos e hoje atualizo no álbum da memória e das trocas cotidianas. Convidei então Rogério Felix, curador, colaborador da Revista Gravidade e morador do bairro da Liberdade, em Salvador (BA), para reunir impressões, práticas e tentativas que, na sua perspectiva como importante agente de uma cena jovem, preta e dissidente na cidade de Salvador, estão a romper as bordas das imagens, seus enquadramentos e suas formatações. Trabalhos que, como bem articulou Felix nas palavras que seguem agora, nos apresentam que, desde a costa atlântica, “no meu tempo, é assim”.

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Daqui desta balaustrada, de laje, onde a vista pode alcançar a Baía de Todos os Santos, pela Península de Itapagipe, refleti um tanto nessas provocações instigantes em torno da fotografia e da memória, na linha do que tenho pensado sobre as plataformas de exibição, especialmente as museológicas, com seus modelos ideais de representação lacrada, cujas políticas, que estandardizam inclusão, no final das contas, induzem a objetificação – descaração – daquilo que tem sido posto como diferente. Em museus, centros culturais e galerias, marcações e remarcações correspondem à operação cotidiana de produzir documentações: simulacros de verdade e utopias do valor social. Resguardando, por alguma excelência, evidências do tempo histórico passado.

Retomo isso porque me interrogo, frequentemente, quanto ao maquinário das lógicas de preservação de significados, manipulado por pessoas com mais ou menos noção das coisas que falam sobre. E também como curta avaliação retrospectiva do breve período em que pude assistir ao tratamento da coleção de mais de 40 mil cartões-postais, retratos de várias partes do mundo nos séculos XIX e XX, do Museu Tempostal. Modelo que, como coloca Diane, implica reproduções na forma da fotografia contemporânea. Parece-me interessante atinar, então, para o potencial das imagens fotográficas que rompem com os enquadramentos e as formatações das diretrizes institucionais/coloniais, justamente como enunciação performática do que se quer e como material instrucional para a revisão dos discursos hegemônicos-homogêneos.

Nesse exercício de focalizar além dos limites impostos, fui lembrando que as pessoas mais velhas da minha família – Silva, Felix, Santos; quem está acima de 23 anos – costumam, como meu tio-avô Walzinho, ter o hábito de reagir à contemporaneidade, dizendo: "No meu tempo (não) era assim". Estejam elas em Salvador, Feira de Santana, Cruz das Almas ou São Paulo. Questiono-me, então, em qual tempo, de qual mundo, elas estão e eu estou. O que, naquelas/nessas circunstâncias históricas do Brasil, século XIX, XX..., era tão ideal que deveria ser mantido, preservado, nos dias de hoje/amanhã?

Penso, inevitavelmente, sobre o que gostaria de ser, acessando memórias, que ora estão disponíveis, ora não puderam ser materializadas – engatilhando nostalgias daquilo que ainda não pôde ser experienciado, à medida que efabulo meios e estratégias de performá-lo. Pois, partindo das rotas que passam por Salvador e estabelecem caminhos aquáticos, terrestres e aéreos para além do mundo atlântico, quero dizer, também, o que no meu tempo é assim.

Não pretendo fazê-lo só: aqui digo junto com oito artistas contemporâneos – Adriano Machado (Brasil), Castiel Vitorino Brasileiro (Brasio), Euridice Kala aka Zaituna Kala (Moçambique), Kerolayne Kemblin (Brasil), María Magdalena Campos-Pons (Cuba), Sumé Aguiar (Brasil), Vaguiner Braz (Brasil) e Victor Mota (Brasil) – que comungam comigo do, e/ou me precedem no, século XXI. Suas investigações poéticas produzem percepções, questionamentos, proposições diante dos espaços culturais das atualizações e ultrapassagens coloniais. São questões vitais, no lastro dos trabalhos, as autobiografias, os gestos performados, geopolíticas nacionais e a intervenção na realidade social. Marcadamente nas estradas de América-África.

De partida, quero recuperar as intenções de Sumé Aguiar (Rio de Janeiro, 1997) com a intervenção Instrumentalização ou Formas de Sentir o Diálogo (2019). Suas experimentações ocorrem no espectro audiovisual e na performance, decorrente de sua pesquisa do conceito de/através de sua "corpa" dissonante. Esta, em particular, “[...] surge da vontade de estar questionando a influência do algoritmo na realidade contemporânea e nas formas relacionais [...]” – premissa que considero fundamental para ponderar as possibilidades de interação das pessoas entre si e também com ambientes expositivos, acervos museológicos, obras de arte, registros históricos.

Sumé Aguiar (Rio de Janeiro, 1997). Instrumentalização ou formas de sentir o diálogo. 2019. Performance no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro. Registro fotográfico: Lucas Magalhães.

Algo que Victor Mota (Pernambués, Salvador, 1993) aborda ao fazer Dermogravuras de um Corpo Presente (2019), marcando balas de canela, tinta orgânica e argila em seu corpo e no tecido branco, “[...] transcendendo a energia de morte em um desejo consciente de vida”, via posições de imortalidade da kemetic yoga. Interessa ainda a Victor, como motriz geral, hackear as programações da necrópole, valendo-se do vídeo, da fotografia e da dança para instalar movimentos disruptivos. Pois bem.

Victor Mota (Salvador, 1993). Dermogravuras de um corpo presente. 2019. Performance na Galeria Cañizares - EBA/UFBA, Salvador. Registro fotográfico: Taylla de Paula.

No sentido de afirmação das nossas presenças, junto com Castiel Vitorino Brasileiro, “Acredito no amor como uma ventania que espanta o medo” (2020). Ou seja, pactuo dessa emoção, redirecionada à busca pela(s) verdade(s), como caminho de expansão. Que ela redireciona para a Cura Travesti e que eu escolho, nesta conversa, dirigir para refletir sobre o tempo e o espaço desde a Liberdade.

Castiel Vitorino Brasileiro (Vitória, 1996). Acredito no amor como uma ventania que espanta o medo. 2020. Fotoperformance. São Paulo.

Recordo, de imediato, que Vaguiner Braz (1983) costuma enunciar-se, com poesias e reflexões motivadas por sua vivência urbana, nas composições fotoperformáticas. Filho de paraiban_s, nasceu e vive no bairro de Paripe – na região do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Ao transitar em outras cidades baianas, como Livramento de Nossa Senhora e Rio de Contas, escava, produz e plasma suas lembranças, certamente intrínsecas às suas identidades – bixa, suburbana, afro-brasileira. Em Parafuso (2019), por exemplo, Vaguiner aponta para algo que, urgentemente, está em jogo: o bem-estar mental e financeiro. O que mais é possível ser extraído de mentes apertadas, corpas ultrajadas?

Vaguiner Braz (Salvador, 1984). Parafuso. 2019. Fotoperformance. Paripe, Subúrbio Ferroviário de Salvador.

Também na dimensão das elucubrações e conjecturas, Adriano Machado (Feira de Santana, 1986) expressa, premente, em suas fotografias e objetos o desejo de inventar territórios, assim como as tecnologias pertinentes à infraestrutura do bem-estar social. De tal maneira que, do sonho com Cobra Verde (2013), tido por dona Bia Conceição – sua avó materna –, ele construiu estradas (trabalho, fé e mistério, dores, amores e resiliência) para percorrer as histórias, migrações, rupturas, ajustamentos, crenças, atuações, em síntese, de sua família – Conceição Machado, na cidade Portal do Sertão – entre os séculos XIX e XX, enquanto vivia em Cachoeira, finalizando a graduação em artes visuais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Nessas direções, criou novos “registros de fé”, pelo relato de suas tias, avó, bisavô, avôs e mãe/pai, para manter sentidos e fazeres que estiveram sendo feitos ao longo do que pôde alcançar de sua genealogia – performando um ato de preservação dos saberes que lhe foram legados, que é (su)a memória coletiva, para estimular quem os acessa a ativar seus próprios imaginários.

Adriano Machado (Feira de Santana, 1986). Fé e mistério. Cobra Verde. 2013. Série fotográfica.

Instância na qual igualmente opera María Magdalena Campos-Pons, que nasceu em 1956 – idade de ser uma tia-avó minha –, em Cuba. Vive nos Estados Unidos. Na sua prática, tem sido central pôr em revisão imaginários de gênero, sexualidade e das populações afrodiaspóricas na América, muito arraigada nos modos de vida iorubá por ela herdados. Em especial, sua obra Nesting #2 (2000) me remete à necessidade de garantir condições para a (re)criação das realidades socioculturais na ampla medida de suas potencialidades.

María Magdalena Campos-Pons (Cuba, 1956). Nesting #2. 2000. Tríptico com polaroid.

Anseio que ressoa em Euridice – também conhecida como (aka) Zaituna – Kala. Nascida em 1987, em Maputo (Moçambique), a artista descreve seu ofício como "envolvendo coleta de arquivos, imagens, textos e experiências, liberando a necessidade de revelá-las no espaço". Seu deslocamento no mundo atlântico se dá entre a África e a Europa, por meio da fotografia, do vídeo, da performance e da escultura. Em seu projeto SEA(E)SCAPES (2015-2018), ela circula entre as cidades de Lisboa (Portugal), Saint-Louis (Senegal), Cidade do Cabo (África do Sul), Ilha de Moçambique e São Luís, capital do Maranhão. 

Euridice Zaituna Kala (Maputo, 1987). SEA(E)SCAPES. 2016-2018. Excerto de uma série de 45 polaroids. (imagem: )

Nessa coreografia, Kala performa um arquivo, que é ela mesma colecionando materiais – fotos, vídeos, sons etc. –, retraçando a rota de uma embarcação portuguesa, San José Paquete de África, que se perdeu no Cabo da Boa Esperança, enquanto busca relações possíveis de ser ressaltadas, estabelecidas, retomadas e criadas. Ansiando, também, por desbravar o mundo Índico. Vale ressaltar que, atualmente, Zaituna integra a exibição principal da primeira edição da Trienal de Stellenbosch, na África do Sul, Tomorrow There Will Be More of Us, chefiada pela curadora Khanyisile Mbongwa – ecoando a urgência transnacional do afincamento de garantias para amanhãs saudáveis.

Ao que mentalizo o “Feitiço pra trazer as coisa boa” (2020), que Kerolayne Kemblin (Manaus, 1994) fez preparando-se para seu próximo renascimento, no bojo de seu trabalho com pintura, lambe-lambe, grafite e colagem. Ele me estimula a manter os olhos abertos e o corpo firme

Kerolayne Kemblin (Manaus, 1994). Feitiço pra trazer as coisa boa. 2020. Montagem manual com fotografia, pião roxo e intuição.

Enfim. Nessas histórias todas, digamos assim: o que vejo, no meu tempo, é que códigos não binários são mais que possíveis para formular programas histórico-culturais. Para seu manejo, é necessário estar equipad_ com as devidas ferramentas e instrumentos que otimizam a implementação das respectivas orientações – que são inúmeras. Ao passo que requerem atualizações – criativas – constantes: não necessariamente como reparo ou ajuste, e sim pelos "recadenciamentos" para processar o realismo social em conjunção com a abstração. 

por Rogério Felix

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Diane Lima é curadora independente, crítica e pesquisadora. Mestra em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), seu trabalho consiste em experimentar práticas curatoriais contemporâneas em perspectiva decolonial. Atualmente integra a equipe curatorial da terceira edição de Frestas – Trienal de Artes, do Sesc/SP e assina a curadoria da exposição Os Dias Antes da Quebra, no Pivô Satélite. Entre seus principais projetos, destacam-se a idealização do programa de arte-educação AfroTranscendence, a curadoria, entre 2016 e 2017, do programa de exposições Diálogos Ausentes, do Itaú Cultural, e a curadoria do Valongo Festival Internacional da Imagem, em 2018 e 2019. Também em 2019 foi cocuradora da Residência PlusAfroT e da exposição coletiva Lost Body – Displacement as Choreography, ambos projetos ocorridos em Munique, na Alemanha. Jurada de diversas comissões de seleção e premiação, é docente da especialização em gestão cultural do Itaú Cultural e cocuradora/organizadora do livro Textos para Ler em Voz Alta, que será lançado em 2021 pela editora francesa Brook.

Rogério Felix é curador independente e pesquisador. Bacharelando em museologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Investiga o potencial das imagens da herança cultural africana em acervos museológicos para a experimentação de práticas curatoriais interdisciplinares, que colaborem para promover autodeterminação histórica. Ele se interessa pelas relações entre cultura (i)material-visual e arte contemporânea na América Latina. Recentemente, foi assistente de acervo no Centro Cultural Solar Ferrão, auxiliando o gerenciamento da Coleção Claudio Masella de Arte Africana e da Coleção de Arte Popular. Atualmente, co-organiza a Revista Gravidade e o Fórum da Imagem, da Galeria Homero Massena.


[1] LUSTE BOULBINA, S. (2017). Sair dos antropologismos e descolonizar o saber. Revista XIX, (3), 46-58. Recuperado de: <https://periodicos.unb.br/index.php/revistaXIX/article/view/21593>. Acesso em: 1 ago. 2010. p. 55.

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