por Ramon Vitral

 

Entre as minhas leituras preferidas sobre as obras do quadrinista brasileiro Marcello Quintanilha estão as análises do site italiano Lo Spazio Bianco e outra do espanhol Valencia Plaza sobre o álbum Tungstênio. A publicação, lançada em 2014 no Brasil pela editora Veneta, venceu o prêmio Polar, na categoria de Melhor História Policial, da 43ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, que ocorreu em 2016 na França. Em 2018 virou filme dirigido por Heitor Dhalia e protagonizado por Fabrício Oliveira, Samira Carvalho e José Dumont.

As duas resenhas precedem o lançamento do filme e têm como foco a HQ de Quintanilha, sobre uma série de tensos encontros e desencontros entre um ex-sargento do Exército, um traficante, um policial e sua esposa. Ambos os textos classificam o trabalho do quadrinista nascido em Niterói como uma obra neorrealista.

“Suas influências passam pela linha clara clássica, mas estão marcadas pelo cinema neorrealista italiano”, afirma o texto de 2017 do crítico Álvaro González publicado no Valencia Plaza, citando a escola de cinema que teve entre seus expoentes Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti e também o estilo de desenho que tem em seu representante maior o belga Hergé – criador do personagem Tintim.

Já o texto de David Padovani no site italiano exalta os protagonistas de Tungstênio e afirma: “São personagens que parecem distantes um do outro, mas que a história conecta também de maneira inesperada e com os quais Quintanilha cria um bem-sucedido afresco neorrealista”.

Acredito que as demais obras recentes de Quintanilha também apresentam esse diálogo com o neorrealismo. Talco de Vidro, Hinário Nacional, algumas das histórias presentes na coletânea Todos os Santos e o recente Luzes de Niterói acabam todos por retratar a realidade socioeconômica de uma época. São todos protagonizados por indivíduos da classe operária, presos em ambientes sociais injustos e quase sempre frustrantes.

Tenho pensado muito sobre o trabalho do autor nos últimos dias. Reli Luzes de Niterói, lançado no início de 2019 e que considero o melhor quadrinho brasileiro do ano passado. Ambientado nos anos 1950, a narrativa é livremente inspirada em um dia caótico na vida do pai do autor, Hélcio Carneiro Quintanilha, na época jogador de futebol em início de carreira pelo Canto do Rio Foot-Ball Club, de Niterói.

A HQ segue uma tentativa de Hélcio e seu amigo Noel aproveitarem o flagrante de uma pesca ilegal com dinamite na Baía da Guanabara para recolher peixes e revendê-los em uma feira. Isso tudo acontece horas antes da ida de Hélcio para a concentração de sua equipe para uma partida no dia seguinte, contra o Vasco da Gama. No entanto, a situação foge do controle.

Há uma sequência em particular de Luzes de Niterói que me impressiona mais do que o habitual. Um conjunto de páginas que retratam os mergulhos cada vez mais profundos do protagonista em busca dos peixes mortos pelas bombas. Em cada submersão ele lembra de momentos-chave de sua vida, em idas e vindas temporais que estão entre as investidas narrativas mais bem sacadas que já vi em uma história em quadrinhos.

Luzes de Niterói também voltou à minha mente por causa das várias matérias recentes sobre o centenário de nascimento de Heleno de Freitas, no último dia 12 de fevereiro. Um dos maiores nomes da história do futebol brasileiro, o jogador está na história tanto por seus feitos como atleta quanto por sua vida pessoal. Recomendo este texto aqui, da Folha de S.Paulo, assinado por Marcos Eduardo Neves, autor da biografia Nunca Houve um Homem como Heleno.

Formado em direito, ouvinte de jazz, boêmio, primeiro bad boy do futebol brasileiro, gênio temperamental e maior ídolo botafoguense antes de Garrincha. Ele morre em um sanatório de Barbacena, aos 39 anos, vítima de sífilis. Uma figura de outros tempos. Li as várias reportagens sobre a vida e a carreira de Heleno publicadas nas últimas semanas tendo em mente os traços e as cores de Quintanilha.

Muito se fala sobre a dificuldade do cinema e da TV em reproduzir como ficção a dramaticidade, as nuances e a plasticidade de um jogo de futebol. Lançado em 2011, Heleno, de José Henrique Fonseca, com Rodrigo Santoro no papel do ex-atleta botafoguense, não chegou perto disso.

Também se pode dizer o mesmo da ficção literária sobre o futebol. A crônica esportiva nacional é farta, com nomes que vão de Nelson Rodrigues a Tostão, mas talvez meu livro preferido de ficção sobre futebol seja O Drible (Companhia das Letras), do escritor, jornalista e crítico literário Sérgio Rodrigues, lançado em 2013. Em quadrinhos ninguém retratou o futebol em todas as suas nuances sociais e estéticas como fez Marcello Quintanilha em Luzes de Niterói, mesmo servindo apenas de pano de fundo para uma trama maior sobre amizade.

Capa da terceira edição da revista Plaf!, com arte da quadrinista Aline Lemos (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Dandara Palankof, pesquisadora e tradutora de quadrinhos e editora da revista Plaf!

A quinta edição da seção que encerra Sarjeta tem como convidada a pesquisadora e tradutora de histórias em quadrinhos Dandara Palankof, uma das editoras da revista recifense sobre histórias em quadrinhos Plaf! – que acabou de lançar sua terceira edição.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Talvez seja um clichê, mas continuo considerando que o mais importante em nosso cenário, ainda em processo de consolidação, é a pluralidade crescente. São vozes das mais diversas, refletindo vivências e experiências variadas, outras visões de mundo, e utilizando estéticas das mais distintas. É realmente muito interessante ver tudo isso florescendo – particularmente com um espaço cada vez maior buscado pelos criadores de fora do eixo Sul-Sudeste. Considero que um dos melhores gibis lançados no ano passado foi O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, um quadrinho pernambucano – sem bairrismo (ou talvez só um pouco). E acho importante o entendimento de que reside nessa diversidade e no fortalecimento das pontes entre nós o estabelecimento de um contraponto ao desmonte da cultura brasileira como um todo que vem sendo promovido pelo atual governo.

Como leitora, pesquisadora e jornalista especialista, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Considero que, entre todas as expressões artísticas, talvez os quadrinhos sejam aquela em que ainda residam mais possibilidades de experimentação da linguagem. É sempre impactante esbarrar com obras que se proponham a isso e sejam bem-sucedidas nesse intento. Mas, no fim das contas, o que sempre vai me interessar é ver boas histórias – e um gibi pode ser bom de várias formas diferentes. Principalmente diante da atual pluralidade da produção nacional, em consonância com minha resposta anterior, o que me interessa é ver quadrinistas produzindo, publicando, fazendo suas histórias chegar às nossas mãos. No fim, tudo sempre vai se resumir a boas histórias, sejam lá quais forem suas propostas (até as de super-heróis e do resto da "grande indústria", estou aqui para defender também o bom gibizinho de herói, me julguem).

Em relação ao mercado, tenho pensado há algum tempo no quanto nosso distanciamento geral do resto da América Latina também se reflete nos quadrinhos – com poucas e notáveis exceções. Tenho hoje muita curiosidade em saber como é a produção e o cenário em países além da Argentina. Em um tempo atrás li um gibi uruguaio sensacional chamado Palabra, uma adaptação de contos de Henry Trujillo feita por Sebastián Santana – que nasceu em La Plata, na Argentina, mas o gibi é bancado por edital do governo uruguaio (uma parte considerável de nossa produção ainda conta com recursos públicos, aliás).

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos em sua vida?

Juro que isto é verdade: minha mãe e minha avó liam historinhas de todo tipo para mim, incluindo quadrinhos, desde muito nova; daí tenho essa lembrança muito nítida, de quando eu tinha uns 5 anos, acho. Teve essa noite em que vovó parou de ler um gibi do Cebolinha para mim e foi ver o Jornal Nacional. Lembro claramente de pegar o gibi e subitamente começar a entender o que estava escrito ali. Eu já ia à escola, então estava sendo alfabetizada – mas ainda não sabia ler, efetivamente, e, de repente, estava lendo. Eu lembro até de ficar surpresa com a parada e de ir contar para minha avó – que me deu um "hum-hum" e seguiu vendo o jornal. Só foi se ligar que era verdade porque no dia seguinte minha mãe apareceu com um livro e eu li o título para elas espontaneamente. 

Mas agora que comecei as reminiscências (haha): são vários os momentos que guardo com carinho, além desse que contei. Da capa do primeiro gibi do Homem-Aranha que meu padrasto me deu; passando por esbarrar, no início da adolescência, em um gibi chamado Estranhos no Paraíso e descobrir como era intenso se ver representada de alguma forma; até os trabalhos como tradutora que me deram muito orgulho de ter feito, o projeto da Plaf!. Tudo isso para dizer – roubando a afirmação, aliás, de um grande amigo – que eu só sou quem eu sou por causa dos quadrinhos.

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