Narrativas é a sétima série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um texto literário inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Fernanda Castello Branco.

Imagem de obra de arte. Ela consiste em um pano com listras horizontais finas e coloridas, com seis chapéus costurados em cima. Cada chapéu é feito de um retalho de tecido diferente. Há retalhos estampados e lisos.
Leonilson
Seis chapéus sobre fundo listrado, ca. 1983
Acervo Banco Itaú (imagem: Sergio Guerini/Itaú Cultural)

Viu o rabo de uma onça pintada, que só a encheu de medo em pesadelo. Na vida mesmo – essa em que só se sonha acordada –, nunca tinha visto uma onça na sua frente. Só em zoológico. E zoológico não vale. Não deveria nem existir. Viu a toalha de mesa da pizzaria, onde ele disse que não a amava mais. Doeu, mas 35 minutos depois ela entendera que também tinha aprendido a chamar costume de amor. Esqueceu ele, nunca esqueceu a toalha de mesa da pizzaria. Viu a barbatana de um tubarão que jurava tê-la espantado do mar quando tinha 11 anos de idade e saiu correndo sem conseguir emitir sequer um som de medo. Via um pedaço do Dois Irmãos, como se estivesse sentada em Ipanema, esperando ele, que só queria mesmo ser seu amigo, ou, quem sabe, esperando um vendedor de chá-mate. Quem chegasse primeiro ela iria receber com alegria. Viu o sangue da primeira menstruação escorrendo pela calcinha. [Mentira.] O sangue da primeira menstruação nem é tão vermelho. Ninguém fala direito sobre isso, mas a primeira menstruação é marrom. Como a terra fértil. Ou como a lama que desce dos barrancos. Por fim, viu a estampa de um vestido da avó paterna, que ela usava em alguns domingos, somente aos domingos, nos almoços que preparava para toda a família.

Não sabia se era para ver cada chapéu costurado em fundo listrado como se fosse uma coisa só. Como se fossem coisas outras. Se era para ver tudo junto. Se era egoísmo pensar em sua vida. Se era para pensar, afinal, em alguma coisa. Fechou os olhos e, ao invés de ver, ouviu. Ouviu Leonilson chorando, dois meses antes de morrer, contando que um médico havia lhe dito que a medicina não podia mais fazer nada por ele. Direto de 1990, eternizado em uma fita cassete, Leonilson também contou que são 3 horas da tarde do dia 12, e a maioria das pessoas está completamente louca com a situação do país.

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>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Fernanda Castello Branco é jornalista, com especialização em jornalismo cultural. É editora do site do IC desde 2011.

Leonilson (1957-1993) foi um pintor, desenhista e escultor. Nascido em Fortaleza (CE), mudou-se com a família para São Paulo (SP) com apenas 4 anos de idade. Saiba mais sobre o artista na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.

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