por Amanda Rigamonti

 

Desde o início do isolamento social, que já ultrapassa cem dias, e como um incentivo para que as pessoas fiquem em casa, as lives de shows têm explodido nas redes sociais. Uma das primeiras iniciativas foi o Festival Fico em Casa (@festivalficoemcasabr) que, inspirado no festival português Eu Fico em Casa, rapidamente organizou uma série de apresentações on-line, entre 24 e 27 de março, sempre reforçando a mensagem da importância de as pessoas ficarem em casa durante esse período.

A partir de então, muitos músicos criaram uma agenda própria de apresentações on-line, surgiram outros festivais e diversas instituições culturais passaram a organizar eventos nas redes. O Instagram, em especial, foi dominado por transmissões ao vivo, fato que, inclusive, virou piada e tema de memes. A programação tem sido tão intensa que seria necessária uma agenda para acompanhar tudo – e eventos que teriam um público-alvo semelhante passaram a competir entre si, e, por vezes, grandes artistas mainstream renomados ofuscaram eventos de menor visibilidade. Quais são, porém, as alternativas em um mercado que construiu seu retorno financeiro baseado em eventos presenciais?

A música como meio para atingir outras causas

Ciça Pereira, produtora e fundadora da Zeferina Produções, viu seu volume de trabalho diminuir consideravelmente nos últimos meses com o cancelamento dos shows. Para ela, o mercado das lives que se consolidou durante a pandemia tem o lado positivo de alcançar mais pessoas. Essa realidade, no entanto, pode chegar a ser prejudicial para os artistas independentes ou que estão mais à margem da cena. “É importante esse lugar do acesso à informação e da democratização da arte; você conseguir estar ali numa plataforma on-line em que todo mundo pode acessar. A questão do alcance, porém, é relativa, porque a concorrência também aumenta.”

E no quesito da concorrência ela acrescenta: “Com a pandemia, os artistas que já ganhavam dinheiro continuaram ganhando com as lives patrocinadas, que são esses artistas maiores. E é engraçado porque até então a gente não competia com eles, que já tinham seu nicho; eles já faziam seus shows fechados e ganhavam suas granas, então, eles pouco se inscreviam em editais e em projetos em que o mercado alternativo se inscrevia, e raramente participavam desses festivais que o mercado alternativo proporciona”.

A produtora cultural Ciça Pereira, uma das fundadoras da Zeferina Produções (imagem: divulgação)

Para além dessa luta por espaço digital, Ciça e sua sócia, Tainá Ramos, pensaram em outro formato para aproveitar a febre das lives e transformaram um projeto que estava no papel – planejado para ser presencial – em um festival on-line. O Xepa Festival (@xepafestival) aconteceu em maio e junho e foi uma parceria com o Desabafo Social e o AfroTrampos, tendo como foco o impacto social, a cultura, a sustentabilidade e a tecnologia.

O evento reuniu diversas personalidades – em sua maioria pessoas negras – em palestras, debates e shows. Enquanto o festival acontecia, ficou no ar uma campanha on-line que arrecadou 10 mil reais para ser distribuídos entre dez pequenos empreendedores negros e periféricos que responderam a uma pesquisa feita pelo AfroTrampos. “São todos do Brasil, sendo oito mulheres, e todos negros. Entre eles, há, por exemplo, uma pessoa que vende peixe em Salvador, outra que faz trança, uma galera que tem seus empreendimentos, mas são negócios muito pequenos, com renda de até 2 mil reais por mês, e que com a pandemia ficaram superafetados. E além do dinheiro essas pessoas vão receber mentoria empresarial gratuita com profissionais da área.”

Os operários da canção e seu telegrama em branco

A música tem se mostrado um elemento essencial para as pessoas em isolamento. Ela faz companhia, alegra, desperta memórias. A partir dela é possível também criar uma memória totalmente nova e única deste tempo – e é isso que propõe a iniciativa Adote o Artista (@adoteoartista),

criado em março pelos parceiros de trabalho e companheiros de vida, ou como eles se chamam namôs, Paulo Neto e Zé Ed. Os músicos contam que, assim que as medidas de isolamento tiveram início e seus trabalhos foram cancelados ou adiados, eles se depararam com a problemática da renda – como se manter sem os shows? “A gente teve um instinto de sobrevivência, porque a gente não tinha reserva financeira, não teria o que comer em duas semanas. Isso encorajou, então já é um desafio, já é uma experiência transformadora”, diz Paulo.

Ele conta ainda que foi acompanhando essa saturação de lives, mas que não via solução nesse formato, que além de não monetizar pode causar angústia em artistas de pouca visibilidade por conta dos números de visualização. Assim, começou a se provocar a pensar em outros formatos, e dessa forma foi se desenhando a Adote o Artista. E o que é? Um negócio que hoje conta já com oito artistas integrantes, em que a proposta é presentear alguém com uma música ou um pocket show.

A experiência funciona da seguinte forma: você escolhe alguém para presentear, entra em contato com a Adote, escolhe o artista que você quer que cante para seu presenteado e passa o contato da pessoa. A partir daí, eles escrevem para a pessoa homenageada, explicam o projeto e contam que você escolheu presenteá-la! Marca-se então um horário, e no momento combinado o WhatsApp toca com uma chamada de vídeo.

Zé Ed e Paulo Neto, criadores da Adote o Artista (imagem: divulgação)

Eu passei por essa experiência e recebi a música como presente dos próprios artistas: quando combinamos a entrevista, Zé Ed me avisou que me ligaria para cantar, antes de conversarmos – e Paulo Neto encerraria nossa chamada com outra canção. E foi assim que numa segunda-feira, às 18h, iniciei o fim do meu expediente do dia. Quando atendi, Zé estava com o violão no colo em frente ao celular. Trocamos algumas palavras, ele me perguntou como estava me sentindo nesse período, me contou de si – o que me deixou à vontade para falar de mim – e então disse: “Escolhi sua música, vou cantar”. Esse é um detalhe importante, quem presenteia não escolhe a canção, ela é selecionada pelo artista a partir dessa conversa inicial.

"Desassossego, temor antecipado, aumenta o cansaço, faz o sono ser roubado, barulho e silêncio, chuva no telhado, dorme a cidade no escuro do seu quarto... Escute ondas da sua pulsação. Uma canção para acalmaaar. Uma canção para acalmar vocêêê. Deixe sua correnteza levar teu pouco de paciência. Uma hora passa, pois tudo passará... Uma canção para acalmar você."

Com uma melodia pensada de fato para acalmar, Zé cantou essa música composta por Fabio Katz, seu parceiro de composição. “Fabio a escreveu seis anos atrás para eu cantar e para me acalmar naquele momento. Quando a gente entrou em isolamento, ela já estava comigo, eu já estava tocando. Pensei em como ela fazia sentido para o momento e eu a tenho cantado no projeto desde então”.

Foi essencial iniciar nossa conversa assim, pois só vivenciando a experiência de ganhar um presente musical – ou um telegrama em branco, maneira como uma pessoa já nomeou o projeto por conta de a canção ser escolhida de surpresa – pude entender o impacto desse trabalho. Zé define o que acontece nesses encontros como “A arte puramente pela arte”. Isso porque todas as canções do repertório são autorais, o que faz com que a maioria das pessoas que presenteiam e recebem não as conheça. E, ainda assim, as pessoas se envolvem. Elas cantam junto, choram, se emocionam. Esse é outro diferencial apontado pelos músicos em relação às lives: poder ver a reação de quem escuta.

“Com a Adote cantamos para pessoas de classes diferentes e de vários cantos – onde tem internet, claro, porque sabemos que em muitos lugares não há. E isso nos fez pensar nessa dificuldade de ganhar espaço com a nossa música autoral, porque muita gente gosta da nossa música sem nunca ter ouvido, então o mercado engana: parece que a pessoa só vai gostar se a música for de alguém conhecido. O tempo todo é este o recorte: de onde já tocou, com quem. E aqui a gente vê uma coisa da música direta, de tocar e a pessoa falar ‘Que boa essa música’ ”, completa ele.

O projeto ainda propõe mais duas pontas nessa “corrente do bem”. A primeira é que uma vez por semana eles cantam gratuitamente em instituições – sempre pelo celular. Eles buscam lugares em que há uma carência de afeto durante este período, como uma casa de adultos com deficiência intelectual que não recebe visita desde o início da pandemia e hospitais (o público são enfermeiros e o setor administrativo). A última ponta é a reversão de 10% de tudo o que é arrecadado pelos oito artistas em doção para diferentes instituições que mantêm a arte. O projeto muda a cada mês e já contemplou o Retiro dos Artistas e o Ballet Paraisópolis.

Como fica o mercado da música depois da pandemia?

É difícil prever como esse mercado vai se reorganizar, já que reunir centenas ou até milhares de pessoas em algum espaço parece ainda uma realidade muito distante – e, quando for permitido, é provável que muita gente não se sinta segura de estar em meio a multidões.

De qualquer forma, alternativas já vêm sendo pensadas: no mês passado teve início a Arena Sessions, que consiste em shows realizados em grandes espaços abertos com palcos em que as pessoas assistem às apresentações de dentro de seus carros. Em São Paulo, por exemplo, os shows acontecem no Allianz Parque, custam entre 250 e 550 reais e têm uma agenda com nomes como Jota Quest (que estreou a programação na semana passada), Turma do Pagode, Marcelo D2 e Anavitória.

Para os que estão fora do mainstream é mais difícil ter alguma previsão. Carol de Amar, da produtora A Macaco, responsável por festivais como o Sarará, em Belo Horizonte, confirma: “Reconfiguramos todo o nosso planejamento, tanto dos artistas quanto dos eventos para 2021. Nossa ideia agora é seguir lançando ainda em 2020 singles e trabalhos dos artistas que já possuíam um apelo e potencial maior no digital, além de usar este período para planejar melhor, com mais cuidado e tranquilidade as turnês, os shows e os festivais para estarmos preparados no momento da retomada do mercado”.

Ciça Pereira confirma que esse futuro é muito incerto, mas acredita que mesmo quando as atividades presenciais voltarem a acontecer as lives devem seguir na agenda: “Acredito que as lives possam se manter no pós-pandemia, porque tivemos um retorno muito interessante, principalmente sobre democratização do acesso. Acho que é um fenômeno novo que está todo mundo estudando e tentando entender como fazer. As lives podem e vão entrar no calendário como uma possibilidade para outros produtos, considerando que existe todo um mercado surgindo e muita coisa vai se mesclar com o off-line”.

E a Adote o Artista, como fica nesse futuro presencial? Zé Ed diz que acredita que o formato veio para ficar. E Paulo Neto reafirma: “Não sei o que vai ser da nossa vida, mas temos de tirar pelo menos uma vez por semana para viver essas experiências, porque nós viajamos o Brasil inteiro e até o mundo, nesse formato, como mensageiros de afetos. [...] Nós já fizemos mais de mil apresentações. E é diferente de cantar para uma plateia, porque agora a gente está trocando com cada uma dessas pessoas, sabemos quem ela são e elas sabem quem somos nós, sabem que tipo de trabalho nós temos, pesquisam a gente na internet, ficam interessadas em saber quem somos, de onde viemos, escutam nossa música em outro lugar. Além de nos reinventarmos, encontramos um jeito muito fora da curva de existir artisticamente, que é o que todo mundo fica querendo. A gente vive se esbarrando com o mercado, porque a gente luta para existir a toda hora”.

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Fotografia com filtro rosa mostra GG Albuquerque do peito para cima. Ele tem cabelo curto encaracolado, bigode e barba e sorri para a câmera. Ao lado esquerda da imagem está o logo do Toca Brasil IC.

GG Albuquerque – Toca Brasil

Conheça o jornalista e pesquisador em um papo sobre as músicas e suas estéticas, sonoridades, imagens, ruas, becos, bailes, esquinas e histórias