por Alexandre Ribeiro e Nayra Lays
"Dá para promover mudanças no conforto?"
A pergunta da mestra em filosofia e colunista Djamila Ribeiro parecia ecoar em mim enquanto aplaudíamos, de costas para o palco, acompanhando a saída das atrizes e dos atores.
Somos ensinadas e ensinados a fugir de conflitos e de qualquer coisa que nos cause desconforto. É esse o caminho comum. Mas quem já entendeu que estamos passando por bruscas rupturas sabe: os desconfortos, quando vindos de questionamentos urgentes, são potenciais pontes. Perceber meu desconforto em vários momentos enquanto assistia à peça Isto É um Negro?, apresentada nos dias 15, 16 e 17 de junho no Itaú Cultural, foi surpreendente, pois significou um mergulho em minhas próprias questões de forma explícita. Foi sair do campo das experiências que se naturalizam e enxergá-las ali, materializadas.
uma questão fluorescente e pulsante em meus olhos a cada vez que eu olho no espelho.
peraí. isto é um negro?
vamos ao constructo clichê da formação de um jovem preto-quase-branco em uma periferia de São Paulo.
primeiro, eles vão matar o seu pai. sim, eles vão matar o seu pai.
se não fisicamente, mas em espírito.
vão te fazer acreditar que tudo que parece com preto em você é abominável, e também já fizeram o seu pai acreditar nisso uma vida toda. nessa etapa, vão dizer que o racismo acabou na abolição.
segundo, destruindo a beleza dos traços de seus ancestrais, de seus pais, de seus iguais, eles vão colocar na sua cabeça que o racismo não só é abominável como o preto, mas ele nem existe. e o que não existe, evidentemente, a gente pode zoar, né?
terceiro, com um humor refinado e lindamente construído, o embranquecimento vai ser certeiro no tiro para te matar. na sua construção, como preto-quase-branco e periférico, ele vai te decretar o veredito final. a sua construção. ou é branco. ou é preto.
lembrando, branco: herói, salvador, lindíssimo. preto: preguiçoso, chorão, horroroso.
e aí, o que vai ser? hein? vai escolher que lado da narrativa, sendo que você pode escolher?
Em todos os momentos senti como se, assim como as atrizes e os atores, eu estivesse nua. Diante de olhares não só de uma plateia, como também de toda uma sociedade. Todo o tempo. Desde que nasci. O ponto de partida da peça é este: corpos negros nus, interagindo entre si, emaranhados em gritos presos performaticamente.
Performar.
Não é também sobre isso a questão que perpassa o ser negra e negro no Brasil? Qual papel, afinal, esperam que eu, uma jovem mulher negra periférica de pele clara, performe?
O racismo cria tantos papéis limitantes e estereotipados. Um ou mais, para cada tom e fenótipo, mas, no fim, sempre acaba nos desumanizando. Como meras imagens construídas através dos olhares de quem “venceu”.
Bianca Santana pode me ajudar, explicando o processo de embranquecimento neste país. Que para europeu houve até convite de prosperidade com marcação para não se misturar com essa “negrada”.
De tempos em tempos, tentou-se silenciar, abafar, embranquecer uma população inteira. Para que os moleques e as minas de todas as quebradas não entendam essa potência de realeza que eles e elas carregam no peito. Para que a maior coroa que coloquemos na cabeça seja a do Burger King. Não de rei, mas de serviçal.
Enquanto cada diálogo, monólogo, interação com o público e silêncio acontecia, eu me sentia um pouco mais exposta, tamanhos os pontos de identificação. Dado momento, me senti dentro de filmes como Corra! e do videoclipe de "This Is America", em uma tensão que se dava diretamente, com perguntas não tão retóricas assim.
Tensionadas.
Foi assim que nos sentimos, em uma plateia com grande número de pessoas não negras. Ao meu lado, um homem branco, mais velho, observava, em silêncio, cada movimento.
Silêncio. Digestão. Ali, também se expôs quem nos olha nuas e nus, e nos (re)constrói como acha que deve.
Mas NÃO! Desta vez não, meus caros amigos.
Com a realeza do conhecimento preto, eu pude entender a luta de um movimento negro, para que PARDO seja considerado nas estatísticas brasileiras no mesmo grupo que negros. E que essa é uma luta por unificação, de negros e pardos. Resultando no preto.
Se hoje escrevo isso, é porque por outro caminho eu pude optar. Tive heróis e heroínas que me aconselharam para que minha vida pudesse mudar.
me olhei no espelho. peraí! isto é um negro?
essa pele parda-quase-branca é negra?
E, depois de muito conflito interno e revolução, eu grito que SIM! Isto é um negro.