por Ramon Vitral

 

O engenheiro de computação russo Alexey Pajitnov acredita que videogames são a confluência perfeita entre seres humanos e tecnologia. Aquilo que para muitos pode não passar de um “joguinho”, ele vê como o reflexo da própria experiência humana em termos físicos, mentais e emocionais. Na sua avaliação, games são muito mais do que escapismo – eles refletem padrões de pensamento e da nossa própria consciência.

Foram essas as reflexões de Pajitnov que o levaram a conceber um dos games mais populares de todos os tempos: Tetris. Isso aí, aquele mesmo dos tijolinhos que precisam ser alinhados na horizontal, hoje com mais de 170 milhões de cópias vendidas desde sua concepção, em junho de 1984, no Centro de Computadores da Academia de Ciências da União Soviética.

A história por trás da criação de Tetris, sua comercialização e popularização ao redor do mundo e as várias tensões empresariais e políticas decorrentes de seu surgimento são o foco de Tetris (Ed. Mino, 256 páginas, 69,90 reais), obra do quadrinista norte-americano Box Brown, com lançamento previsto para o início de abril e tradução do quadrinista Celio Cecare.

Tetris foi algo imenso para mim”, disse Box Brown em conversa comigo sobre o impacto do game criado por Pajitnov em sua vida. “A minha família inteira jogava. Foi o primeiro jogo que me permitiu criar uma conexão com o meu pai e outros adultos, porque eles também jogavam. Foi a primeira vez que eles realmente compreenderam a obsessão da minha geração por videogames.”

Aos 40 anos, Box Brown é um dos principais nomes da cena norte-americana de HQs autorais. Ele intercala seu trabalho como editor e autor de seu selo independente Retrofit Comics com seus quadrinhos documentais para a First Second Books, selo de HQs da gigante editorial Holtzbrinck Publishing Group.

Entre seus outros títulos documentais estão Cannabis, a outra obra dele publicada em português, focada no processo de “ilegalização” da maconha nos Estados Unidos; Andre the Giant, sobre a vida do wrestler profissional e ator francês André René Roussimoff (1946-1993); e Is This Guy for Real? The Unbelievable Andy Kaufman, biografia do ator Andy Kaufman (1949-1984), que rendeu a Brown em 2019 um Eisner Award, prêmio máximo da indústria norte-americana de HQs, na categoria de Melhor Obra Baseada na Realidade.

Assim como nos outros trabalhos de Brown inspirados no mundo real, Tetris tem como principais méritos seu respeito aos fatos e sua habilidade como contador de histórias. Ele transforma uma história sobre engenheiros dentro de laboratórios e debates entre advogados e burocratas em uma trama frenética, com várias reviravoltas e sempre respeitando as pesquisas e entrevistas que fez durante a produção do livro.

Concebido às vésperas do declínio da União Soviética, o jogo ganhou versões piratas em todo o mundo antes de ter seus direitos oficialmente vendidos pelas autoridades soviéticas. Seu sucesso resultou em fortunas milionárias, mortes suspeitas e crises diplomáticas. A disposição blocada dos quadros e o uso do amarelo como cor predominante do livro casam perfeitamente com os temas e os ares de game oitentista do quadrinho.

“A primeira coisa que eu fiz foi criar uma espécie de árvore genealógica de todos os personagens e como estão conectados uns aos outros; mantive isso em um quadro de cortiça em frente à minha mesa enquanto estava criando o livro”, contou o autor sobre seus métodos de trabalho. “Isso me ajudou a apresentar os inúmeros personagens que desempenharam algum papel nessa história.”

Sobre o trabalho de conciliar os registros históricos protagonizados por Pajitnov, seus colegas e os vários empresários envolvidos na difusão do game ao redor do mundo sem tornar a obra uma HQ burocrática, Brown disse: “Sim, eu fiquei muito preocupado com isso. A maior parte da história trata de vários homens em roupas de negócios durante reuniões. Tive de ficar buscando soluções para tornar o livro visualmente dinâmico. Acho que é por isso que escolhi o amarelo, para manter as páginas visualmente atraentes. Eu também queria que as páginas brilhassem, lembrando um pouco um videogame”.

Brown vai além de seus objetivos e trata de temas que cercam as mais diversas indústrias criativas. Ele aborda a relação da humanidade com jogos – não apenas eletrônicos –, trata da legitimação de games como obras de arte, narra o surgimento e a evolução das principais desenvolvedoras de jogos eletrônicos ao longo do século XX e ainda propõe reflexões sobre direitos autorais e a dinâmica nem sempre bem resolvida entre arte e mercado. “Isso é algo com que os quadrinhos também precisam lidar, da mesma forma que os videogames”, disse Brown sobre a necessidade de administrar as contas que tem para pagar e seus anseios por trabalhos autorais e nem sempre comerciáveis.

“Na verdade, é algo que toda forma de arte acaba tendo de enfrentar de alguma maneira”, acrescentou. “Você é constantemente confrontado com a possibilidade de fazer coisas por dinheiro. Estamos todos na mira dessa mesma arma. É quase impossível não ter algum propósito comercial na sua arte. Todos nós temos de viver. Você precisa torcer para que o seu trabalho não esteja sendo influenciado por suas necessidades financeiras, mas é quase impossível que isso aconteça.”

FIQ adiado e bienal de Curitiba “acompanhando os desdobramentos”

Na terceira edição da Sarjeta, publicada em dezembro de 2019, comentei como 2020 seria marcado pelo combo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, e Bienal de Quadrinhos de Curitiba, na capital paranaense. Más notícias: como medida de controle de transmissão do novo coronavírus, a prefeitura de Belo Horizonte optou pelo adiamento do evento, que seria realizado entre os dias 27 e 31 de maio. A organização prometeu atualizações assim que tiver novidades sobre esse tema.

Entrei em contato com a organização da bienal para saber sobre o possível impacto também no evento de Curitiba, marcado para entre 6 e 9 de agosto. A coordenadora do festival, Luciana Falcon, me respondeu: “Estamos acompanhando os desdobramentos da evolução da pandemia e as determinações do governo sobre segurança e realização de eventos, e qualquer novidade extra comunicaremos pelas redes”.

Páginas de Partir, obra da quadrinista Grazi Fonseca (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Grazi Fonseca, autora de Partir, Tempo, Futon e Hay

A sexta edição da seção que fecha a Sarjeta é protagonizada pela quadrinista Grazi Fonseca, autora de obras como Tempo, Futon, Hay e Partir – essa última agora disponível em edição independente após ser inicialmente publicada na Coleção Des.Gráfica/MIS, parceria entre a Feira Des.Gráfica e o Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

A liberdade da autoexpressão e os lugares a que ela pode chegar. Expressar sua própria percepção de mundo, com suas próprias limitações, faz parte de uma busca pessoal, mas que depende do outro para se consolidar. Hoje é possível encontrar espaços (físicos: feiras; e virtuais: redes sociais, financiamentos coletivos e contínuos) onde existe público, mesmo que seja o nicho do nicho, interessado em apoiar você. A cena de quadrinhos foi onde senti que esse autoconhecimento era possível, e isso é bem especial.

Como leitora e autora, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Sou atraída por experiências visuais sinceras, que representam um pensamento singular por meio de imagens sucintas ou não. Principalmente publicações com narrativas subjetivas, silenciosas, nas quais, aparentemente, nada acontece.

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Tinha uns 5 ou 6 anos de idade. Estava no pátio de casa, mergulhada em uma sacola grande de brinquedos doados pela amiga da minha mãe. Encontrei um gibi da Turma da Mônica, acho que os desenhos me chamaram, folheei, mas não li. Não sabia ler. Deixei de lado. E fui brincar com as tintas guache.

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