por Nayra Lays
Escrevo este texto numa noite anterior à minha primeira viagem de avião a trabalho. Meu primeiro voo, literalmente, proporcionado pela música. Achei que registrar esse momento em texto aqui seria necessário, afinal é exatamente sobre travessias de que estamos falando, certo? Não é necessariamente sobre um destino final, mas sobre o ato de se propor mergulhar para buscar outros lados. É a tentativa.
E se você, assim como eu, está conscientemente trilhando seu próprio caminho sabe que cada realização causa uma explosão dentro da gente, uma sensação que os versos-mantras do poeta Igor Chico traduzem bem:
“Mas comemore cada passo,
Cada sol,
Cada sim,
Já que só nois sabe o peso de cada não”
É…
Dia desses, reencontrei um pedaço de mim datado de 2015, há exatos quatro anos. Era um momento de transição, no qual comecei a traçar alguns planos: sair do emprego de Jovem Aprendiz, estudar jornalismo, trabalhar com arte e comunicação e buscar ao menos algumas, das muitas, respostas para a pergunta: quem sou eu de verdade?
Aos 18 anos, subverti três coisas que o racismo e o machismo tentam, cruelmente, nos introjetar:
1. Pessoas como eu, que vêm de onde venho, não têm o direito ao mundo fora de suas próprias quebradas, ainda mais de ESCOLHER qualquer coisa na vida.
2. É de um egoísmo imperdoável pensar em mim mesma, nos meus desejos e nas formas de manifestação também.
3. (e a mais dolorosa para mim) Deus só cabe em templos cristãos, e eu JAMAIS acharia paz se escolhesse outros caminhos e jeitos de descobri-lo.
Não sabia, necessariamente, a grandeza dos meus passos e, na leveza de moleca querendo descobrir meu próprio universo, comecei o curso de jornalismo em uma agência-escola para jovens de periferias, me dividindo entre um trabalho onde só executava coisas sem saber a razão daquilo e aulas nas quais era instigada a pensar, buscar e criar.
No mesmo ano, idealizei um projeto com algumas minas do meu bairro para falarmos sobre autoestima e descoberta de nossas potências individuais. No fluxo de despedidas do que já não me cabia, em uma tarde quente e alaranjada, decretei o fim de um molde religioso que seguia desde os 12 anos. Preferi dizer adeus a viver uma mentira, mesmo sabendo que minha decisão implicaria abdicar de algumas relações familiares importantes. Eu começava a fazer tudo o que me ensinaram que não devia: sonhar sem freio.
Mas se engana quem acha que saí ilesa do crime da escolha. A culpa não me permitiria – e eu demorei algum tempo para entender esse sentimento como o responsável pelas vozes que ainda hoje ouço – cada conquista. Vozes essas que caminham com cada um de nós, nos dizendo grandes bobagens contra nosso desejo de liberdade. Dia desses, lendo Café, de Dona Jacira, deparei com uma descrição interessante, que peço permissão para compartilhar aqui:
“E quantas vezes aqui, nesta revisão, ainda tenho a voz que me nega, de todas elas, me amaldiçoando as parcerias, como se pra mim nunca coubesse um final feliz.
[...]
E com certeza irão estar na editora, nos saraus, nas livrarias, bibliotecas, no mundo. Com outras caras, outras palavras, mas com a mesma inveja. Com o mesmo medo da minha vitória, já que tudo fizeram pra impedir minha voz”
O que é que a gente faz quando o barulho de dogmas, regras, limitações, medos e monstros nos faz colocar em xeque a batalha diária da autoconstrução? Como é que se toca os músculos que sustentam toda a energia vital que nos alimenta o sonho para desatar os nós doloridos dos traumas? Como entender o ponto exato da tensão, e chorar, falar e sentir tanto quanto necessário? Chegar ao magma da dor para ver o que há, afinal, nesse peso entre o umbigo e a garganta?
Eu escolho cantar, caminhar no mundo por todo lugar e pedir ajuda. Escolho me manter viva.
Acho importante escrever este texto, repito, algumas horas antes de embarcar rumo a mais um passo – e nem falo apenas da música. É sobre a promessa que me fiz, de ser paciente com um processo de lapidação enquanto ser humano, entendendo que é minha responsabilidade estar atenta à minha história, para contá-la hoje e em um futuro próximo. Firmo meus passos e me permito sentir (de verdade) tudo o que tem chegado e há de vir.
Amanhã, enquanto passear entre as nuvens, sobrevoando a cidade e o mar, cruzando o muro do impossível e da culpa, eu me lembrarei que a vida é para ser vista de cima. Só assim deixamos de nos apegar a qualquer pequenez imposta.
Tintim.