Gloria Lescano é gestora cultural pela Universidade de Piura, no Peru. Foi subgerente de Promoção Cultural e Cidadania (2014) e chefe de Promoção Cultural (2011-2013) do município de Lima. No mesmo período, implementou e dirigiu o Programa Cultura Viva Comunitária, o Programa de Artes de Rua e o Programa de Cultura e Cidadania. Atua como consultora em gestão cultural no Centro Cultural da Universidade Nacional de San Marcos. Tem ministrado cursos e oficinas na Escola Superior Autônoma de Belas-Artes, da Universidade Antonio Ruiz de Montoya, e no Instituto Superior Pedagógico do Museu de Arte de Lima. A especialista fala ao Observatório sobre sua trajetória.
Você esteve envolvida no processo de implementação do Programa Cultura Viva Comunitária em Lima, no Peru. Qual é o balanço que você faz sobre a importância desse programa nos dias atuais?
A importância do programa reside em ter mostrado aos cidadãos que outra forma de governar é possível: era necessário romper com os paradigmas que vinham dirigindo as políticas culturais na cidade. Passou-se do centralismo à descentralização; da ideia de transportar cultura para o povo à de reconhecer os processos culturais existentes nos bairros e fortalecê-los; da priorização dos conteúdos midiáticos à priorização dos conteúdos locais; de ver a cultura como um âmbito de entretenimento a entendê-la como um eixo transversal às políticas públicas; de compreender o trabalho artístico como um hobby a valorizá-lo como uma profissão; do hermetismo à implementação de transparência nos processos; e, o mais importante, das políticas públicas construídas de cima às políticas públicas construídas pelo povo.
As mudanças nas políticas públicas afetam a realidade de pessoas que estão fora das grandes cidades, onde as demandas são outras?
Considero que as afetam indiretamente e no longo prazo, já que podem se constituir como referentes ou modelos a se seguidos por governos locais de territórios menores. Por exemplo, na atualidade, diversas autoridades de governos regionais ou municipais de diferentes territórios do Peru estão solicitando assessoria e documentação que lhes permitam implementar os próprios processos de construção de políticas culturais públicas, tomando como base o que foi realizado na gestão anterior.
Outro exemplo é a Escola Nacional de Gestão Pública, que está incluindo o curso de gestão cultural para municipalidades no programa de formação em gestão municipal, do qual participam funcionários públicos de todo o Peru. Vemos, então, que há um interesse, que o tema tem sido colocado na agenda e que se tem contribuído para o posicionamento das políticas culturais como elemento central do desenvolvimento humano no setor público.
Você pode comentar a importância e os principais resultados dos Seminários Internacionais de Cultura Viva Comunitária?
Os três seminários internacionais contribuíram em três linhas para o fortalecimento da cultura viva comunitária na cidade. Primeiro, permitiram que pela primeira vez os próprios atores do movimento cultural tivessem voz no âmbito oficial do governo municipal, já que foram eles mesmos que contaram suas histórias, suas experiências e suas aprendizagens durante o seminário.
Isso ainda contribuiu para um processo fundamental, que é o da sistematização. Para participar, as organizações tiveram de preparar uma apresentação sobre o início de seus processos, suas motivações, as dificuldades e os resultados obtidos, entre outros pontos. Esse exercício foi sem dúvida um desafio, porque implicou fazer uma avaliação de sua própria história, sintetizá-la e dá-la a conhecer de maneira clara. Por meio da contribuição do programa para o registro dessas experiências, elas foram logo publicadas nos formatos audiovisual e escrito, para multiplicar o alcance.
Finalmente, acredito que o mais importante foi a contribuição para o intercâmbio com o movimento latino-americano de cultura viva comunitária, o que permitiu dimensionar a magnitude do processo. Tanto as organizações culturais comunitárias como os funcionários públicos estávamos imersos nesse processo – isso nos deu mais forças, mais referências, mais segurança, já que vimos que somos todos um continente lutando pela mudança de paradigma por meio da cultura.
A Revista Observatório número 15 traz o artigo “Era uma vez o Programa Cultura Viva...”, de Célio Turino, em que ele destaca que um dos desafios para a implementação dos Pontos de Cultura no Brasil foi a burocracia, pois ela impedia (e impede) um diálogo direto do Estado com o povo. Algumas medidas foram tomadas para tentar sanar esse problema, como a criação de convênios. Você pode comentar quais foram os desafios encontrados em Lima?
Estou totalmente de acordo com Célio. Lamentavelmente, as estruturas do Estado não são feitas para empoderar o povo – pelo contrário. É por isso que é responsabilidade de todos os que apostamos na gestão pública penetrar o Estado e transformá-lo. Sabemos disso por experiência própria: encontramos dificuldades para captar fundos públicos para as organizações culturais dos bairros.
Para isso, tivemos de conseguir a aprovação da portaria de Cultura Viva Comunitária, que pode transformar a institucionalidade e criar pela primeira vez um sistema que permite que o dinheiro do povo seja investido no povo. Mesmo assim, não existiam vias especializadas em contratar serviços culturais, pois antes, na maioria dos casos, esses serviços não eram remunerados, por não ser considerados atividades profissionais.
Portanto, deveria ser feito o mesmo procedimento para contratar um grupo de circo de rua e para contratar um engenheiro, quer dizer, apresentar documentos que comprovassem estudos oficiais e contratos trabalhistas. Como podemos pedir aos circenses seu título universitário em circo de rua ou a fatura por cada sol [moeda do Peru] que ganharam nos semáforos ou nos bulevares? Foi necessário, então, sensibilizar os funcionários da área administrativa sobre a realidade do setor cultural no país e, dessa maneira, passaram a ser aceitos outros documentos para avaliar a experiência de vida desses artistas, como cartazes, volantes, recortes de periódicos, fotografias e vídeos.
Isso também implicou esforço da parte do setor cultural para condensar essa informação, classificá-la e ter a lista em um arquivo para as diferentes ocasiões nas quais fosse solicitado. Vemos, dessa forma, que foi preciso realizar esforços partindo de todos os âmbitos para conquistar o reconhecimento dos processos culturais pela estrutura administrativa do Estado.
Existem indicadores culturais que foram adotados em Lima em relação ao Programa Cultura Viva Comunitária? Você pode comentar esses resultados?
Sim, utilizaram-se diferentes metodologias para medir o impacto do programa: quantitativas, qualitativas e simbólicas. Em relação ao nível quantitativo, nos Festivais de Cultura Viva Comunitária era importante saber se essa atividade do programa estava contribuindo para que os vizinhos conhecessem as organizações culturais de sua localidade. Os resultados mostraram que, antes dos festivais, mais de 60% dos participantes não as conheciam, mas, após os festivais, mais de 95% afirmaram que as organizações contribuíam para o desenvolvimento de sua comunidade.
No nível qualitativo, recolhemos uma diversidade de testemunhos que nos permitiram, por exemplo, ver que o programa constituía um espaço para fortalecer os laços comunitários nos bairros. Temos testemunhos de vizinhos que se reencontraram depois de anos nos festivais – apesar de viverem a poucas quadras de distância – ou de vizinhos que só então se conheceram e logo se somaram às organizações dos bairros.
Finalmente, com as metodologias simbólicas buscamos evidenciar algumas das transformações mais profundas. Por exemplo, um dos objetivos das oficinas de arte na comunidade era incrementar a autoestima dos meninos e das meninas que participavam do programa. Esse era um tema muito difícil de medir com uma votação: como perguntar a uma criança se ela sente que sua autoestima se elevou? Para isso, utilizou-se uma linguagem simbólica, e as crianças, por meio da pintura e da poesia, expressaram como se sentiam desde o início da participação nas oficinas: “Sinto-me como uma gata poderosa” é uma das frases que, acompanhadas de imagens, indicavam o efeito empoderador das oficinas para os meninos e as meninas participantes.