Por Bernardo Buarque e Daniela Alfonsi

Para ter acesso ao conteúdo integral das entrevistas, além de conhecer todos os aspectos teórico-metodológicos do projeto Futebol, Memória e Patrimônio, acesse o site do CPDOC.

Aqui propomos mostrar o exemplo de uma entrevista, apresentando alguns rendimentos analíticos que se podem extrair do contato com os jogadores.

Antes de entrar na entrevista, deve-se considerar que a gravação de depoimentos com atletas da Seleção Brasileira encontrou-se muitas vezes envolta em “ares míticos”. Para os entrevistadores, estar face a face com um grande ídolo do passado exigiu um exercício preliminar de “desmistificação”, uma vez que não foram poucas as histórias ouvidas e lidas sobre os personagens que contavam suas histórias de vida.

Se, no caso dos entrevistados que pertenciam à mesma geração dos entrevistadores, a dificuldade também pudesse existir, entrevistar jogadores mais velhos, que participaram de copas nos idos de 1950, 1960 ou 1970, requeria um cuidado, por assim dizer, redobrado. Isso porque o imaginário esportivo fora construído e retransmitido por outrem – sejam os meios de comunicação, sejam pessoas que os viram jogar –, e não vivenciado pelo próprio entrevistador.

Fiquemos com um exemplo: Ademir da Guia é um destes jogadores “legendários” do passado futebolístico nacional que depôs para a pesquisa. O qualificativo legendário possui duas acepções: primeiro, no sentido de que se trata de um atleta que é filho de outra legenda, Domingos Antônio da Guia, zagueiro de origem negra que atuou na Copa do Mundo da França, de 1938, muito citado quando se fala do advento do profissionalismo no futebol.

Domingos da Guia foi alvo de intensas citações de jornalistas esportivos e de intelectuais que refletiram sobre a criação de um “estilo de jogo” originalmente brasileiro, estilo esse que é a fragmentação de um processo de universalização, nas palavras do antropólogo Luiz Henrique de Toledo, baseado na mescla racial, no improviso e na individualidade.

A título de ilustração, lembre-se que o sociólogo Gilberto Freyre, nos anos 1940, chamava o pai de Ademir da Guia de “apolíneo”, por ser um defensor altivo, contido, capaz de sair da defesa driblando, sem dar um chute de modo grosseiro ou precipitado. Devido a essa característica, foi criada a expressão “domingada”, trocadilho com seu sobrenome, como ato de conduzir a bola de dentro da grande área e estabelecer, de maneira precisa, a ligação com o meio de campo.

Tal estilo contrastava, segundo Freyre, com o do atacante Leônidas da Silva, ídolo mais irascível e por essa razão alcunhado “dionisíaco”. Em prefácio ao livro O Negro no Futebol Brasileiro, publicado originalmente em 1947, o sociólogo se valia ainda da comparação com o mundo literário e equiparava Domingos da Guia a um “Machado de Assis do futebol”, espécie de “inglês desgarrado em terras tropicais” (Rodrigues, 2003, p. 25).

Em segundo lugar, a imagem lendária se deve ao fato de o próprio Ademir, conhecido pela imprensa como “Divino Mestre”, ter sido um jogador de grande destaque entre as décadas de 1960 e 1970, um dos expoentes da chamada Academia do Palmeiras. A isso soma-se a incorporação de parte do estilo de jogo altivo do pai – corpo esguio, fleuma, cabeça ereta ao dominar a bola –, ainda que sua posição tenha sido no meio de campo e não na zaga defensora.

Ainda a respeito da “classe” do pai de Ademir, o escritor José Lins do Rego debatia sobre o assunto em uma de suas crônicas, publicadas em livro de 1945, dois anos antes do prefácio de Gilberto Freyre à referida obra do jornalista Mario Filho. Ao reproduzir uma conversa ouvida entre dois torcedores, o literato finalizava seu texto com a conclusão de que o equilíbrio de Apolo derivava não só da categoria e da habilidade, como também da disposição para correr e vencer:

Ouviu-se um grito tremendo de todo o estádio. Era Domingos que fazia uma tirada como um toureiro que matasse um touro bravo. “Este tem classe”, disse o primeiro negro. “É, mas tem fôlego também”, disse o segundo negro. E aí estava todo o problema que eu e o poeta Schmidt debatíamos: Fôlego e Classe (apud Lima, 2010, p. 38).

Quando profissional, Ademir atuou nas duas fases em que o vitorioso time do Palmeiras tornou-se conhecido como “Academia”. O nome fazia referência à habilidade e ao talento do conjunto do time, liderado pelo Divino, elenco de atletas que fez “escola” entre os clubes da época. À guisa de ilustração, veja-se o que afirma sobre Ademir um dicionário dedicado aos melhores jogadores sul-americanos do século XX: “Genial, de toque refinado, elegante, drible fácil, bons lançamentos e grande visão de jogo. Craque” (Henningsen, 2002, p. 10).

É importante ressaltar ainda que há poucos registros, entre futebolistas, de tradições de famílias constituídas por jogadores, com a transmissão de pai para filho do mesmo trabalho. Se, em profissões mais tradicionais, as linhagens familiares de médicos, engenheiros ou advogados se sucedem com o passar das gerações, o mesmo se repete com menos frequência no futebol.

Na preparação para essa entrevista, as informações biográficas sobre o atleta permitiram ainda constatar que a relação não se restringiu ao duo Domingos-Ademir, mas a um núcleo familiar mais extenso, a envolver irmãos e tios que também foram jogadores de futebol.

Além da influência decisiva da família, o meio geográfico e industrial de nascimento exerceu algum nível de influência na trajetória de Ademir da Guia. Nascido e criado em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, Ademir foi influenciado por uma região de origem operária, marca de uma das grandes matrizes difusoras da prática de futebol no Brasil, tal como estudado por Fátima Antunes, ao lado dos clubes, das escolas e das várzeas. A fábrica, o bairro e o clube mesclam-se na construção da identidade local suburbana, superpondo-se ou amalgamando-se às histórias de vida dos moradores da localidade.

Em face dessas considerações de fundo, cabe dizer que, logo no início desse depoimento, o “homem” Ademir permitiu desconstruir as expectativas em torno do “mito” do “Divino Mestre”. O despojamento e a placidez do ex-jogador saltaram à vista desde o princípio do encontro. O temperamento do jogador parecia avesso a qualquer tipo de idolatria. Suas respostas eram, o mais das vezes, enxutas e simples, para não dizer monossilábicas, e revelavam a ausência de qualquer tipo de reverência, autoexaltação ou afetação.

Em um apanhado geral, observa-se que o relato enfatiza uma versão dos acontecimentos que procura “naturalizar” todos os fatos. Isto é, de acordo com as palavras do entrevistado, tudo parece ter acontecido de maneira “natural”, não devendo ser engrandecido nem supervalorizado em narrativas hiperbólicas. Se, em muitos dos outros depoimentos, o tom predominante era o das queixas e das reclamações, dirigidas aos “cartolas”, às comissões técnicas, à família, aos torcedores ou até mesmo ao “destino”, esta tônica esteve longe de acontecer com a fala de Ademir.

Nesse sentido, ao contrário das expectativas iniciais, Ademir pouco fala do pai como um “mito”, como um ser grandiloquente. A figura paterna é vista com admiração, sim, mas sem qualquer forma de “aura”. Perguntado pelas imagens “freyreanas” de Domingos, pouco é afirmado ou confirmado. Lacônico, o entrevistado diz simplesmente ignorar essa imagem mitificada do pai.

Quando um dos entrevistadores lhe pergunta acerca de um depoimento prestado por Domingos da Guia ao Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, no final dos anos 1960, Ademir diz não saber da existência do mesmo. Neste registro, sabe-se que Domingos falava de como havia aprendido a driblar, imitando os passos do miudinho, um “tipo de samba” característico do Rio de Janeiro. As relações entre música e futebol, tão decantadas por escritores e jornalistas esportivos, encontram um silêncio eloquente nas rememorações de Ademir, que desconhece a alusão a tal estilo por assim dizer “malandro”.

A família de Ademir, no entanto, ocupa um lugar de proeminência no relato, haja vista que, diferentemente de outros atletas, o apoio para jogar sempre foi amplo, aberto e irrestrito. O bairro e o clube do Bangu têm peso bastante relevante nas lembranças do jogador. Sobre a comunidade, Ademir ressalta o calor intenso e inclemente que fazia quando lá morava. Acentua que, pela distância entre o subúrbio e as praias da zona sul do Rio, a única alternativa de quem morava na zona oeste era ir à piscina que havia no clube. Era a principal, para não dizer a única, opção de lazer dos banguenses. Assim se dava a primeira aproximação vicinal e comunitária com o ambiente clubístico nas décadas de 1940 e 1950, numa linha de continuidade que ia da família à vizinhança e desta ao clube.

Apesar da identidade banguense, um lugar institucional e profissional ancorado na história do futebol carioca desde o princípio do século XX, Ademir destaca os pequenos clubes amadores e os terrenos baldios como o seu espaço de iniciação no futebol. Ou seja, a porta de entrada no futebol não foi automaticamente mediada pelo clube de origem operária, fundado por engenheiros ingleses em 1904. Em um primeiro momento, as possibilidades de ingresso no clube mais tradicional e homônimo de Bangu passam pela mediação do pai, célebre craque na região, que se vale de seu prestígio para ajudar na inserção do filho.

Durante o relato, Ademir ainda se recorda da transferência do pai para o Corinthians Paulista, nos anos 1940, onde afinal encerrou a carreira. Cita também o nome do empresário Guilherme da Silveira, patrono do clube, conhecido como Silveirinha, mas pouco desenvolve sobre questões políticas e sobre dirigentes do time.

As recordações de Ademir voltam mais uma vez à cidade e ao bairro de origem. Encerrada a carreira em São Paulo, Domingos apoia a entrada do filho nas divisões de base do Bangu. Depois de passar pela fase de testes e de ascender na hierarquia interna, ele começa a se firmar no clube, o que ocorreu quando estava próximo de completar 14 anos. Ao se destacar nos jogos contra os grandes times cariocas, chama a atenção dos demais para seu futebol. Enquanto seu pai fora jogar no Flamengo, Ademir, após cinco anos no clube alvirrubro da zona oeste, acerta contrato com a Sociedade Esportiva Palmeiras. Em 1961, aos 19 anos, dá início à projeção nacional que o levaria por fim à seleção e, em seguida, à Copa do Mundo de 1974, na qual seria reserva e chegaria a jogar algumas partidas.

Eis, acima, breves apontamentos que exemplificam o potencial e a riqueza de dados das entrevistas reunidas no projeto Futebol, Memória e Patrimônio. No caso da trajetória de Ademir, e de sua herança familiar, o relato de suas memórias dão-nos indícios para desconstruir, por exemplo, um dos modos de mistificação do chamado autêntico “estilo nacional” de jogo. Trata-se de rever discursos consagrados, com narrativas associadas à performance dos futebolistas brasileiros dos anos 1930 a 1980. Materializados em jogadores negros e operários como Domingos e Ademir da Guia, tais discursos, no entanto, não encontram respaldo nas memórias narradas pelos próprios objetos dessas representações que acentuam o chamado “futebol-arte” brasileiro.

Temos assim uma amostra de como o vasto material pode ser acompanhado e analisado em cada uma das 54 entrevistas que integram o projeto.

 

Bernardo Borges Buarque de Hollanda é doutor em história social, pesquisador do CPDOC, professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo (SP), e coordenador do MBA em bens culturais da mesma instituição.

Daniela do Amaral Alfonsi é diretora técnica do Museu do Futebol, onde coordenou a área de documentação, pesquisa e exposições e a implantação do Centro de Referência do Futebol Brasileiro. Doutoranda em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), ela desenvolve uma pesquisa sobre a área de patrimonialização do esporte.


Referências bibliográficas

HENNINGSEN, Hans. Os melhores jogadores do século XX. Rio de Janeiro: Il. Henningsen, 2002.

LIMA, João Gabriel de (org.). Literatura & futebol. São Paulo: Abril, 2010.

RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

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