por Tiago Barbosa D'Ambrosio
Entre os dias 17 e 27 de novembro de 2016, aconteceu a 20ª edição do Forumdoc.bh, o Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Fórum de Antropologia e Cinema. Criado em 1997 em Belo Horizonte (MG), pelo coletivo Filmes de Quintal, o evento ainda dá origem a uma série de publicações: confira o catálogo de 2016 e de anos anteriores.
O Observatório Itaú Cultural conversou com Junia Torres, uma das organizadoras do Forumdoc.bh, sobre os 20 anos do festival e questões como financiamento do audiovisual e formação de público.
Como surgiu o Forumdoc.bh?
O festival foi criado de forma independente por um grupo de amigos, pesquisadores interessados nas relações entre a imagem e a antropologia, entre o cinema e o mundo. E ainda é realizado assim, por um coletivo – a Associação Filmes de Quintal – que se reúne para ver, compartilhar, debater e fazer filmes (e outras aventuras), gerando pensamento e ação sobre as questões do nosso tempo. Queríamos mostrar a força também estética do documentário e desconstrui-lo em sua forma reportagem ou como o lugar de um saber de especialistas. Queríamos assistir a bons filmes aos quais não tínhamos acesso. Queríamos conhecer o que estava sendo produzido mundo afora. Mostras como o Bilan du Film Ethnographique, idealizada por Jean Rouch nos anos 1960, e a Mostra Internacional do Filme Etnográfico do Rio de Janeiro, em cujas primeiras edições estivemos presentes, seguem sendo inspirações seminais.
Vinte anos de edições consecutivas de um festival de audiovisual é um feito incrível no Brasil. Mesmo assim, a edição deste ano teve grande dificuldade para levantar recursos, o que resultou na diminuição do número de filmes exibidos. Quais foram essas dificuldades? Como você avalia as possibilidades de sustentar iniciativas como essa, ou do audiovisual em geral, no contexto atual do país?
Sim, 20 anos consecutivos – e a cada ano uma batalha por mobilizar recursos necessários. Não é nada fácil. O fato de o Forumdoc ser um projeto realizado de forma coletiva e colaborativa explica, em parte, como temos conseguido. E outro fator é a consolidação, nestas décadas, de mecanismos de incentivo. Mecanismos que, infelizmente, correm o risco de ser dilapidados pelas atuais instâncias governamentais (tanto federais como em âmbito local) na medida em que se defende a indefensável redução de investimentos até mesmo em setores fundamentais como saúde e educação; imaginemos o que se dará (ou se dá) com a cultura, que, de acordo com essa visão distorcida, é considerada algo supérfluo. Tal visão não é capaz de perceber o potencial (também econômico, mas sobretudo de inclusão, formação e produção de conhecimentos e capacitação profissional) de ações como o Forumdoc. Estamos temerosos pois, apenas no último ano, em comparação com o ano anterior, menos da metade dos projetos culturais conseguiu se viabilizar por meio dos mecanismos federais de incentivo. É extremamente preocupante o cenário atual. Inverter a lógica de "gasto" para a percepção de investimento público nesta área é fundamental. Sem o aporte de recursos por meio de mecanismos de incentivo, não poderíamos continuar, assim como tantos outros projetos associados à diversificação das expressões culturais e de sua difusão no país. A lógica unicamente do mercado e da comercialização não funciona para nós. Tanto fundos e investimentos orçamentários diretos em cultura quanto mecanismos de incentivo que possibilitem apoios de outras instituições patrocinadoras da cultura são imprescindíveis. No caso dos festivais, é importante ainda que, nos moldes do que já acontece em outros países, mais de uma edição (três a cinco edições) possam ser garantidas a cada submissão dos projetos, o que permite planejamento a longo prazo e maior fôlego para a realização da iniciativa.
Quais são, hoje, os temas mais recorrentes nas produções nacionais e internacionais?
São temas que apontam para uma tomada de posição reflexiva sobre o cenário no qual estamos todos inseridos de forma global, planetária: um alerta sobre a proximidade do fim da vida tal qual a conhecemos na Terra, pela exacerbação de processos exploratórios dos recursos de nosso habitat e pela imposição de um modo de vida – branco, ocidental, capitalista, antropocêntrico, heteronormativo – sobre os outros – não ocidentais, indígenas, "tradicionais”, diversos, não humanos etc. Catástrofes, guerras, urbanização exacerbada e o modelo unívoco do capitalismo/consumismo, mas também novas formas de luta e resistência, novas subjetividades (como afirmações da diversidade de gênero e étnicas), são destaques relevantes. Dos mais de 300 documentários contemporâneos (finalizados nos últimos dois anos) inscritos na Mostra Internacional, a ampla maioria trata de tais questões. São produções de longa duração: para enfrentar questões complexas, os filmes requerem tempo. Atualmente podemos perceber, também pelo cinema, que o fim de um mundo se aproxima: lidar com “a era das catástrofes”, encarar que estamos em pleno “Antropoceno” (uma nova era em que a ação do homem sobre o planeta é definidora de seu destino) é o que apontam muitos dos filmes da atualidade.
Desde que o festival foi criado, que mudanças você enxerga no gênero documentário ou nas temáticas abordadas pelos filmes?
Percebemos mudanças formais importantes se consolidarem ao longo dessas duas décadas – e que eram já apontadas antes por grandes mestres como Jean Rouch, Jonas Mekas, Agnès Varda, Glauber Rocha e mesmo Eduardo Coutinho (que buscava a verdade da inscrição na representação ou ficção de si de seus interlocutores) – no que tange à complexidade da forma narrativa nas produções documentais, no abandono das falas autorizadas dos especialistas, das vozes over, do caráter didático e de reportagem no tratamento de questões do real relativas ao nosso tempo histórico e político, propondo formas inventivas, formalmente mais ousadas. Rompimentos de limites outrora definidos entre os modos ficcionais e documentais ganharam força. Nota-se também outro processo importante: o deslocamento e a diversificação do sujeito da enunciação fílmica, uma multiplicação das perspectivas, dos pontos de vista, permitida em grande medida pela democratização e ampliação do acesso aos meios de produção de filmes, o que alterou o que hoje podemos conceber como “o cinema”.
Ao longo destas duas décadas, quais dificuldades e conquistas vocês tiveram em relação à formação de público para o cinema documental?
Pudemos perceber que um interesse ampliado se consolidou pelo documentário e por filmes que dialogam com esse gênero. Por exemplo: o público do festival hoje é bastante heterogêneo. Notamos que certa maneira de ver essa forma narrativa, associada ao filme didático, maçante, deixa paulatinamente de ser majoritária. Novas formas fílmicas documentais puderam ser apreciadas e conquistaram público. E também o festival mudou, no sentido de se abrir ao que poderíamos chamar de filmes ficcionados, aos não classificáveis entre os gêneros ou a produções notoriamente ficcionais, roteirizadas, que nos interessam pelo que ousam, pelas temáticas abordadas, por virem de onde vêm. Essa ampliação e renovação do interesse pelos filmes compartilhados por meio do Forumdoc é muito gratificante.
Além da exibição de filmes, vocês organizam discussões, sessões comentadas, seminários e oficinas. Como isso contribui para o fomento do debate no meio documental?
Esse lugar privilegiado para o debate tem sido um diferencial importante no perfil do Forumdoc. Procuramos pôr autores e público, realizadores e potenciais realizadores em contato, procurando criar trocas não só entre “especialistas” da área. Ao contrário, queremos fomentar a interlocução com outros campos de expressão e do pensamento, como a antropologia, a filosofia, a história e os conhecimentos tradicionais, indígenas etc. Não só no que diz respeito a questões formais, embora elas sejam bastante relevantes, mas também no que diz respeito a questões existenciais, humanas, coletivas, sociais, antropológicas. As oficinas também cumprem esse papel de encontro e interlocução, de forma às vezes surpreendente – por exemplo, ao termos um professor cineasta indígena da Papua-Nova Guiné (Martin Maden), formado pelos Ateliers Varan da França, ministrando aulas para aspirantes a realizadores, estudantes universitários; ou oficinas em que os mais experimentados cineastas xavantes (como Divino Tserewahu) ensinam técnicas de câmera aos tikmu’un. Assim, novos e interessantes realizadores se formam e o cinema se transforma. Grandes nomes do documentário contemporâneo, como Avi Mograbi e Andrea Tonacci, ou pensadores da imagem, como Marie-José Mondzain, Jean-Louis Comolli, Eduardo Escorel e Jean-Claude Bernardet, puderam estar entre nós. Ou pudemos estar entre eles.
Como a antropologia e a etnografia fortalecem ou potencializam as produções cinematográficas, e vice-versa?
A antropologia é a ciência do encontro, o saber da relação e da escuta; a etnografia é observação, descrição cuidadosa e imersão que pode gerar o deslocamento de perspectivas e do olhar. O cinema é uma possibilidade de expressão mais simétrica entre diferentes povos, entre diferentes modos culturais que conformam subjetividades diversas, é possibilidade maior de partilha e de compartilhamento de horizontes, de fazer junto. Cinema e antropologia têm muito a ganhar com suas confluências.
Como se dá a estratégia de descentralização do festival, que leva parte da sua programação para regiões periféricas de Belo Horizonte e para outros municípios de Minas Gerais? Qual é a importância disso para vocês?
Os nossos espaços culturais centralizados, como as salas de cinema e de aula, ainda são, apesar dos esforços de alguns projetos, bastante elitizados, brancos, ricos, esteticamente estranhos para a maioria da população, e têm sido pouco capazes de se abrir para abrigar um público mais heterogêneo e interessante. Percebemos que apenas a gratuidade, muito importante e marca de todas as atividades da programação do Forumdoc, não era suficiente para alcançar novos públicos. Essa descentralização – que se dá por meio da articulação com outros coletivos – tem nos permitido dialogar com espaços como ocupações, escolas públicas, centros culturais comunitários, comunidades e bairros de periferia e grupos culturais e tradicionais descentralizados em termos geográficos e no mapa da cultura oficial da cidade. Em cidades de diferentes regiões do interior do estado, a estratégia tem sido a mesma: de articulação com coletivos ou instituições locais que já batalham pela cultura em cada um desses lugares, pois o que conta é, principalmente, a possibilidade de criar e fomentar interlocutores, diálogos. Não somos um festival que tem a pretensão de jogar um filme de sucesso global na tela para centenas de pessoas, recolher e ir embora. Não é isso o Forumdoc.
Quais são os outros projetos da Filmes de Quintal? E como é coordenar um ponto de cultura, o Quintal de Cultura?
É difícil! Sem verbas permanentes, com o desmonte do Programa Cultura Viva – ação do Ministério da Cultura que permitiu a existência dos pontos –, a cada ano e a cada projeto a luta por recursos se inicia do zero, o que nos obrigada a mobilizar grande parte do tempo e da energia em busca de recursos que nos permitam continuar a existir – e, o que é pior, nem sempre podemos manter a regularidade das atividades de formação em audiovisual, foco do nosso projeto Quintal de Cultura. Essa iniciativa é voltada para a promoção de autonomia no que tange aos meios de realização (pela cessão dos equipamentos de gravação, edição e exibição, tendo como inspiração o seminal e fundamental Vídeo nas Aldeias, coordenado por Vincent Carelli) de coletivos sediados em áreas descentralizadas e grupos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais urbanas e de periferia. Tem sido muito difícil continuar. Mas a capacidade que esses “participantes” têm de prosseguir é sempre surpreendente. Mesmo quando não há recursos, de alguma forma procuram (procuramos) manter proximidade e continuidade. Mas fato é que hoje há uma precarização total dos grupos participantes, dos equipamentos, das sedes. Um retrocesso.
Além desses processos formativos, a Filmes de Quintal realiza documentários, publicações, mostras autorais (como as retrospectivas de Pedro Costa e Naomi Kawase, apresentadas também no Rio de Janeiro e em São Paulo). A associação reúne um coletivo de realizadores em cinema e pesquisadores que não se “restringem” ao documental, mas ampliam os dois lados da equação “ficção e documentário”, apostando na relação profícua entre os dois campos e entre o cinema e a antropologia. E estamos também próximos das artes circenses, nos equilibrando na corda bamba...
Por fim, você gostaria de destacar alguns filmes relevantes no cenário recente?
Entre os filmes mais importantes da década certamente está o premiado Martírio, de Vincent Carelli, codirigido com Ernesto de Carvalho e Tita Almeida. A obra foi exibida na abertura do Forumdoc.bh de 2016.
Destacamos também a importante perspectiva dos cineastas indígenas, ressaltando produções como Para Reté (Patricia Ferreira Mbya), filme que abriga, em sua forma e em seu ritmo, uma relação própria com o tempo e entre as gerações, e Iniciação dos Filhos dos Espíritos da Terra (Isael Maxakali), que apresenta relações entre humanos, espíritos e animais a partir de um ponto de vista próprio, evidenciando formas diversas de convivência com os seres com os quais compomos o mundo.
Quando Dois Mundos Colidem (Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel), exibido na mostra internacional do Forumdoc de 2016, é emblemático no que diz respeito às temáticas recorrentes nos documentários internacionais inscritos nessa edição, apresentando visões de mundo opostas: uma que procura garantir a existência da floresta e de seus habitantes e a do Estado-corporação de Allan Garcia, no Peru, que visa lucros para o capital internacional. Wake (Subic), de John Gianvito, em suas mais de quatro horas de duração, tematiza a degradação humana e ambiental nas Filipinas, mostrando a destruição de uma sociedade tradicional a partir da instalação de bases militares americanas. Esforço fílmico impressionante.
Ressaltamos ainda produções nacionais como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, premiado no Forumdoc de 2014, e Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós, filme que abriu o 18º festival, além do acervo de Andrea Tonacci, que dá voz a diversas lideranças indígenas nas Américas. O material foi recentemente depositado na Cinemateca Brasileira, após ser digitalizado por meio do apoio do programa Rumos Itaú Cultural. Foi o último trabalho deste cineasta e humanista genial.
Queremos, finalmente, destacar duas produções selecionadas para a Mostra Contemporânea Brasileira em 2016: Kbela, de Yasmin Thayná, filme de investigação formal que abriga a performance, somando-se ao processo de fortalecimento da resistência negra e feminina, e Deixa na Régua, de Emílio Domingos, por se caracterizar como filme etnográfico no melhor estilo do cinema do encontro, cinema de aliado. Aliado, como o Forumdoc tem procurado ser nesses tantos anos, do que não se encontra no centro, mas nas margens do cinema e desta sociedade (ocidental) em desmoronamento.