por Ramon Vitral

 

Algumas histórias em quadrinhos têm uma espécie de efeito hipnótico em mim. Não é comum, mas acontece. Crio um vínculo com o enredo e a arte que tornam meu foco integral à HQ. Até lembro do mundo lá fora, mas entro numa espécie de transe. Geralmente é o que acontece quando leio um trabalho do Fabio Zimbres.

Tem a ver com o traço e as tramas meio infantis, o desprendimento das linhas retas e o desapego a referências anatômicas. Não é preciso muita bagagem para compreender a sofisticação narrativa de Zimbres em meio às esquisitices de suas HQs.

Página de Eu Fiz Uma História em Quadrinhos, de Fabio Zimbres (imagem: divulgação)

Leia Eu Fiz Uma História em Quadrinhos para você ver. O título foi publicado na 21ª edição da coleção Ugritos, série de publicações de bolso da editora Ugra Press. São 20 páginas em preto e branco do mais puro Zimbres: um rapaz com tendências suicidas internado em um hospício é estimulado por seus amigos imaginários a produzir uma HQ.

Acompanhamos a jornada do protagonista como quadrinista e a própria HQ produzida por ele. É curtinha demais para contar mais, mas garanto risadas de canto de boca com toda a singularidade visual do autor que culmina em uma das estranhezas mais bem-vindas dos quadrinhos nacionais em 2020.

Página de Eu Fiz Uma História em Quadrinhos, de Fabio Zimbres (imagem: divulgação)

Zimbres é coautor de Música para Antropomorfos, parceria dele com os músicos da banda goiana Mechanics composta de uma HQ e um disco. O quadrinho do projeto é uma das minhas HQs preferidas na vida. Mostra a rotina de dois robôs e o cotidiano da população em meio a disputas de poder e crises existenciais de seus cidadãos.

Cada capítulo adapta uma canção do disco do Mechanics, com Zimbres variando seu estilo de robô para robô e também ao representar o interior de cada criatura. Lançado em 2007, o livro foi republicado em 2018 pela Zarabatana Books e o disco está disponível on-line, na íntegra e de graça, no site do conjunto.

De Zimbres também recomendo Vida Boa, coletânea das tiras homônimas publicadas pelo autor no jornal Folha de S.Paulo entre 1999 e 2001 e algumas posteriormente produzidas por ele para encerrar a saga do solitário e desempregado Hugo em meio às suas reflexões sobre a vida. Foi publicada em 2009 pela mesma Zarabatana que relançou Música para Antropomorfos

Tempo + espaço

Também me pego constantemente hipnotizado pelos trabalhos do Rafael Sica. O mais recente deles é Brasil, HQ de 48 páginas, também em formato de bolso, publicada pela editora/ateliê Caderno Listrado. Já li e reli algumas vezes. Outras das minhas leituras preferidas deste 2020.

Página de Brasil, de Rafael Sica (imagem: divulgação)

A sinopse oficial, assinada pelo autor diz: “Um livro com esse título poderia ser sobre tantas coisas, mas não é o caso. Esse é um livro sobre a prática danosa da transformação do país dessas tantas coisas em um país de uma coisa só: um Brasil de monocultura. Brasil foi desenhado em meio à vegetação nativa, durante a pandemia, enquanto a boiada passava”.

O quadrinho tem início com um senhor sentado em uma poltrona no interior de sua casa. Aos poucos ele começa a remover do imóvel cada um de seus bens. Depois se vão as paredes da casa, as roupas de seu morador e por aí vai. Também são poucas páginas, por isso estraga se contar mais.

Em 2019 Sica teve seus trabalhos expostos na mostra O Ordinário Rafael Sica, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, com curadoria de Weaver Lima. Um dos textos de apresentação do evento é assinado por Zimbres. Ele explica como vê a matéria prima de Sica como o tempo.

“O que vemos é o tempo agindo no espaço e o espaço conformando o tempo”, escreve Zimbres. “É uma maneira de dizer que nada passa por essa vida incólume, mesmo o tempo, nosso senhor, sofre as restrições do espaço de que ele faz parte e que faz parte dele.” 

O Brasil de Sica também é sobre isso. Reflete sobre a relação do ser humano com a terra, as transformações pelas quais o país passou nas últimas centenas de anos e a falta de perspectivas de qualquer mudança para melhor.

É o primeiro trabalho de Sica em uma ambientação não urbana que leio. E apesar do tom pessimista, sem o humor melancólico de obras prévias, segue o mesmo ar poético das tiras do livro Ordinário e da coletânea Fachadas – uma reunião de flagrantes imaginários (ou não) do autor em frente a casas antigas.

Brasil foi impresso em serigrafia, especialidade da Caderno Listrado, em tiragem de apenas 200 exemplares. Suspeito que não demore para esgotar. O projeto gráfico preciso, sem excessos e com ares artesanais, resultou em uma das publicações mais bonitas do ano.

Vulcão + entrevistas

Saio do papel para o virtual. Tenho dificuldade com a leitura de quadrinhos digitais. Com exceção de tiras e cartuns, eu me distraio facilmente quando leio no computador, perco o foco com as notificações de redes sociais e outros ruídos do tipo. Recomendo duas exceções recentes.

Quando listei minhas leituras durante a pandemia citei Pumii do Vulcão, série do quadrinista Rogi Silva, publicada no Twitter e no Instagram. Ele recentemente chegou à 50ª atualização/página semanal do projeto, fim da primeira temporada da série, e anunciou uma breve interrupção para planejar a próxima leva de páginas. É o momento ideal para colocar a leitura em dia.

Página de Pumii do Vulcão, de Rogi Silva (Divulgação) (imagem: divulgação)

E não deixe passar a série Entre Quadros, trabalho da quadrinista Gabriela Güllich para o site Mina de HQ. Ela transforma em HQs entrevistas feitas por ela com grandes nomes dos quadrinhos mundiais. Ela já conversou com a norte-americana Emil Ferris, a colombiana-equatoriana Powerpaola, a egípcia Deena Mohamed e a brasileira Laerte, entre outras.

Cinco perguntas para… Gabriela Borges, editora do site/perfil/revista Mina de HQ

Falando em Mina de HQ, fecho esta 14ª Sarjeta com uma entrevista com a jornalista Gabriela Borges, editora do site, perfil e agora revista Mina de HQ. Além das tradicionais três perguntas que fecham cada edição da coluna, mandei duas focadas na publicação da primeira edição da revista, com lançamento marcado para dezembro. 

Capa da primeira edição da revista Mina de HQ (imagem: divulgação)

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

O que eu vejo de mais especial é a força que a internet proporciona aos artistas independentes, que representam diferentes contextos sociais, como região, classe social, gênero, sexualidade, cor, religiões. Eles estão produzindo muitas coisas interessantes: buscam formatos digitais inovadores para mostrar seus trabalhos nas redes sociais ou em plataformas como o Tapas, oferecem coisas exclusivas aos apoiadores mensais nos financiamentos de coletivo contínuo, possibilitam meios de autopublicação... E nós, como leitores, temos acesso a mais trabalhos, a mais diversidade, sem depender tanto do que é pautado pelo mercado e pelas grandes editoras. Por outro lado, é claro que tenho de reconhecer que estamos todos trabalhando muito e não necessariamente sendo remunerados por isso. O desafio é tentar achar esse equilíbrio. 

O que mais o interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Muita coisa diferente tem me interessado em termos de narrativa e estilo de desenho. Mas uma coisa que vem me interessando bastante é quem busca contar uma história que tenha um tema relevante, que faça a gente pensar em algo importante para o mundo hoje, mas que faça isso de um jeito que entretenha. O entretenimento não precisa ser levinho nem divertidinho, pode ser profundo. E tenho visto isso acontecer tanto nos trabalhos que são publicados na internet quanto em livros impressos. Eu tenho me interessado muito também pelos quadrinhos autorais, pelas autobiografias, pelas histórias honestas, criativas. 

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Acho que a memória mais antiga que tenho é de ter muitos gibis da Turma da Mônica em casa e ir com meu pai até a banca para trocar dois por um. Eu devia ter uns 7, 8 anos. E adorava ganhar o Almanaque de Férias para ler nas nossas viagens para a praia. A gente sempre teve também uns quadrinhos da Disney em casa. No fim da década de 1980, começo dos anos 90, havia um sorteio no programa da Vovó Mafalda em que você tinha de cortar umas figuras das revistas da Disney para participar – meu irmão e eu mandamos muuuuitas cartinhas! 

A revista Mina de HQ celebra o aniversário de cinco anos da Mina de HQ. Qual balanço você faz desse projeto até aqui?

A primeira edição da revista Mina de HQ é mesmo uma celebração do trabalho que venho fazendo há tanto tempo. A Mina cresceu bastante nos últimos anos quando passei a dedicar mais tempo, e também vem acompanhando meu amadurecimento pessoal, político, minha visão de mundo. É um projeto que me dá muito trabalho, pouco retorno financeiro, mas muita alegria! E sinto que segue sendo relevante para o mercado brasileiro de quadrinhos. Minha busca é sempre esta: ser relevante. Senão, não faz sentido. 

O que mais a surpreendeu na produção do primeiro número da revista Mina de HQ?

Várias coisas! E a mais importante é o interesse de muitas pessoas por uma revista independente, feminista e segmentada. Incrível a quantidade de artistas de várias cidades do Brasil que topou criar especialmente para a Mina de HQ histórias relacionadas a temas que traduziram o que a gente está vivendo neste ano de 2020 tão conturbado, assim como fiquei muito feliz com o envolvimento de todo mundo que topou colaborar com a revista. Foram 19 quadrinistas, 5 colaboradoras de texto, 1 diretora de arte, 1 revisora, mais todo o apoio da Ugra Press na logística e distribuição, a capa linda da Bennê Oliveira... É muita gente talentosa que se somou ao trabalho! E mais: fiquei MUITO feliz com a quantidade de pessoas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo e com a expectativa para ler a primeira edição. Em dezembro vou lançar a revista oficialmente na CCXP Worlds e começar as vendas para o público aberto. E, se tudo der certo, ano que vem teremos mais edições.

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