Por André Bernardo
Os “abridores de letras” da Amazônia conseguem realizar uma proeza aparentemente impossível: tornar os rios da região ainda mais coloridos e enfeitados. São eles que, de maneira criativa e autodidata, embelezam os barcos que cruzam os rios do Pará, pintando os nomes de seus donos nos cascos. Essa tradição tipicamente ribeirinha e geralmente transmitida de pai para filho é tema do projeto Letras que Flutuam – Expedição Marajó, contemplado com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016. “Como sou tipógrafa e pesquisadora de tipografia, o ofício do abridor de letras chamou minha atenção por seu parentesco formal com a tipografia vitoriana, do século XIX”, explica Fernanda Martins, que coordena o trabalho ao lado da também designer e pesquisadora Sâmia Batista.
Letras que Flutuam mapeia e documenta o ofício dos abridores de letras de barcos desde 2004. Com o apoio de um edital do Ministério da Cultura, Fernanda e Sâmia coordenaram, em 2013, a expedição intitulada Polo Belém, que percorreu, além da capital paraense, três cidades do interior do estado: Barcarena, Abaetetuba e Igarapé-Miri. Em Barcarena, o número de abridores de letras caiu nos últimos anos – muitos deles trocaram a atividade por um trabalho com carteira assinada. Em Abaetetuba, os barcos começaram a ser decorados com letras que fazem referência ao grafite.
Em Belém, a equipe mapeou 71 abridores de letras de barcos. Desses, 42 foram entrevistados. O projeto incluiu, ainda, exposições nos municípios visitados e oficinas para alunos da rede pública, com o objetivo de conscientizar as novas gerações da importância de preservar essa manifestação da cultura amazônica. “Convidamos os próprios abridores de letras para ministrar as oficinas. Essa etapa do trabalho teve uma repercussão muito boa na mídia local e isso colaborou para que os próprios mestres, que não compreendiam bem o projeto, entendessem a relevância de seu trabalho e o significado do que estávamos fazendo. Hoje, são nossos parceiros”, explica Fernanda.
Próximo destino: Ilha do Marajó
Passados três anos de Polo Belém, Fernanda e Sâmia dão continuidade ao projeto e inauguram a Expedição Marajó. Segundo Fernanda, a parte mais difícil e trabalhosa é filmar na Amazônia. “A logística é complicada: só se viaja de barco, as cidades são distantes umas das outras, o celular nem sempre pega e a conexão com a internet é difícil”, lista. “É praticamente outro mundo”, completa a pesquisadora.
Dessa vez, Letras que Flutuam se propõe a mapear os abridores de letras da Ilha do Marajó e será registrado em videodocumentário. Na maioria das vezes, esses artistas plásticos da região Amazônica descobrem sua vocação vendo os pais desenhar letras nos cascos das embarcações. Bastante requisitados, os abridores de letras garantem que o ofício assegura o sustento de suas famílias.
No momento, está sendo realizado o mapeamento dos municípios de Soure e Salvaterra, que fazem parte do Marajó dos Campos, e Breves, São Sebastião da Boa Vista, Curralinho e Ponta de Pedras, que constituem o chamado Marajó das Florestas. Um dos objetivos das pesquisadoras é promover um intercâmbio gráfico, de técnicas e saberes entre os abridores de letras de Belém e Marajó.
Em seguida, será desenvolvido o roteiro para o documentário, cujas filmagens estão previstas para o mês de abril ou maio. “Em breve, disponibilizaremos as informações coletadas em um site”, avisa Fernanda. Depois de editado e finalizado, o filme será exibido nos municípios ribeirinhos visitados. “A previsão é que, até julho, o projeto já esteja concluído”, estima Fernanda.