por Jessica Orlandi
O Bongar – grupo musical formado por integrantes do terreiro da nação Xambá, do Quilombo do Portão do Gelo, em Olinda (PE) – se prepara para lançar um novo disco em 2017, o quinto da sua carreira. Intitulado Ogum Iê!, o trabalho busca preservar e valorizar a criatividade musical desenvolvida por jovens de comunidades de terreiro das periferias do país, mas dialogando com outros instrumentos e agregando sonoridades e valores melódicos.
Composto de oito faixas, sendo sete inéditas de autoria de Guitinho da Xambá, músico e vocalista do grupo, o álbum foi gravado em duas etapas: durante uma semana (de 14 a 18 de novembro de 2016) no estúdio Cachuera!, em São Paulo, e depois no terreiro Xambá no decorrer do Toque de Oyá (que aconteceu no dia 18 de dezembro de 2016), quando foi captado ao vivo o canto tradicional no dialeto iorubá que irá integrar uma das faixas do disco. “As toadas foram executadas pelo babalorixá do terreiro, Ivo da Xambá, e com o coro de toda a comunidade presente na festa”, conta Marileide Alves, produtora do Bongar.
Ogum Iê! é uma homenagem de Guitinho ao seu orixá Ogum, uma das 14 divindades do candomblé cultuadas no terreiro Xambá. O trabalho tem o maestro Letieres Leite na direção musical – além dos arranjos, sendo alguns deles feitos com os músicos do Bongar – e a participação de integrantes da Orkestra Rumpilezz, dos instrumentistas Julio Fejuca (violão e cavaquinho) e Gabriel Levy (acordeom), do coro da comunidade da Xambá e também do pequeno Gabriel da Xambá, de 12 anos, um dos membros da Orkestra de Tambores da Xambá, montada a partir das oficinas de percussão para crianças e adolescentes oferecidas pelo grupo.
Segundo o vocalista do Bongar, o grupo tem a identidade musical inicial marcada pela sonoridade do Coco da Xambá (tradicional brincadeira local), presente nos quatro primeiros discos que lançou [29 de Junho, Chão Batido Coco Pisado, Festa de Terreiro (também em DVD) e Samba de Gira]. Agora, com Ogum Iê!, projeto selecionado pelo Rumos Itaú Cultural, segue mais para a linha do candomblé e do xangô pernambucano, mostrando que seus integrantes também podem fazer um trabalho diversificado, dialogando com outros ritmos, gêneros, melodias e instrumentos musicais.
“Esse disco revela ainda que os instrumentos tradicionais da Xambá – como alfaia, abê, yan e cobel – são tão tecnológicos quanto os da Orkestra Rumpilezz ou os de Julio Fejuca e Gabriel Levy”, diz Guitinho. “Nós temos essa diversidade, essa coisa eclética de ressignificar sem corromper; de pegar a nossa música e não entendê-la como algo já lapidado, mas como uma música milenar, que ultrapassa a modernidade com sua sonoridade ao se unir a placas de aço, tonéis de alumínio, facões e latas. Algo que revela a essência do orixá Ogum, o Deus africano da tecnologia e senhor dos caminhos.”
O músico acrescenta que Ogum Iê! revela a capacidade da juventude periférica de terreiro em produzir um álbum a partir do seu vivencial. “Ao mesmo tempo que a poesia remete a um universo bem tradicional, orgânico, o disco traz uma coisa nova, de tecnologia, de captação”, explica. O projeto é resultado de um trabalho de pesquisa e vivência dos músicos do Bongar dentro do terreiro Xambá, único reduto dessa linhagem africana no Brasil.
Com 15 anos de história, completados em agosto de 2016, o Bongar é atualmente formado por Guitinho (voz e composição), Shirleno (alfaia, abê, yan e coro), Moisés (congas, ganzá, cobel, melê e coro), Thúlio (voz, caixa, prato, yan, melê e coro), Neta (abê, melê ancó, alfaia, ganzá, cobel, pandeiro e coro) e Beto (ganzá, pandeiro, congas, caixa, prato, cobel, melê e coro). Todos são primos, nascidos e criados no terreiro Xambá.
O lançamento de Ogum Iê! acontece em 30 de abril, no Centro Cultural Grupo Bongar – Nação Xambá, em Olinda. Já em São Paulo, o show de lançamento do disco será no dia 20 de maio, no palco do Auditório Ibirapuera.
O Bongar e o maestro Letieres Leite
De acordo com Marileide Alves e Guitinho da Xambá, foi uma alegria muito grande quando Letieres Leite, maestro da Orkestra Rumpilezz, aceitou o convite para participar do projeto de gravação do disco. “Eu assisti a um show dele com a Rumpilezz em São Paulo e achei incrível”, conta Guitinho. “Pesquisando um pouco, descobri que ele tem uma relação com a espiritualidade. Como Ogum Iê! é um disco que leva o grupo para um universo que traduz o candomblé da nossa família, mas de forma ressignificada, achamos que ele seria a pessoa certa para fazer esse trabalho conosco.”
O músico acrescenta que Letieres Leite não tinha vivência com essa parte percussiva da Xambá e que ficou encantado com o que viu e ouviu. “O arranjo que ele montou conosco para a música 'Ogum' foi criado a partir de uma frase de variação que nós fazemos no yan [instrumento de percussão que, no culto da Xambá, é o mais grave e gera um som mais livre, permitindo fazer variações]. Ele ficou encantado, já que nunca tinha escutado algo assim. Pegamos essa frase rítmica e a subdividimos em três células”, explica.
A peculiaridade da comunidade Xambá e do Bongar
No universo afro-brasileiro, existem vários segmentos de tradições africanas, como Ketu, Jeje e Nagô. A Xambá é uma dessas tradições – e no continente africano fica condensada, em sua maioria, entre Camarões e a Nigéria, em uma área transitória entre os cultos banto e iorubano. É isso o que atribui uma particularidade à Xambá, segundo Guitinho. “Na parte musical cantada, ela é mais iorubana. Na parte da culinária, veste e percussão, ela é muito banto. Isso gera um diferencial que reflete no som dos tambores”, diz.
A comunidade quilombola Xambá, situada no subúrbio da cidade de Olinda, é o primeiro quilombo urbano de Pernambuco reconhecido do país e o terceiro da região Norte-Nordeste. Trata-se de um ponto de encontro de diversas manifestações da pluralidade cultural pernambucana, como maracatu, afoxé, ciranda e coco.
O terreiro Xambá é o único no estado que utiliza o engome, instrumento feito com madeira de jenipapo retorcido ou tronco da macaibeira e que possui o formato de uma barrica de vinho. Os outros terreiros utilizam o atabaque e o ilu (chamado de ilu de cruz). Espécie de tambor, o engome tem somente uma membrana com couro de bode na parte de cima, sem o couro de resposta na parte de baixo – como é comum na maioria dos tambores existentes. “Isso faz com que seja mais difícil para o músico tirar o som e diferencia o Bongar”, explica Guitinho. “A desenvoltura para tocar esse instrumento é muito peculiar, muito particular.”
A ideia de criar o grupo surgiu no ano de 2001, com a finalidade de retratar a história da comunidade Xambá, que migrou de Alagoas para Pernambuco e, desde 1930, se encontra em Olinda cultivando suas origens por meio do culto aos orixás. Além de Ogum Iê!, o Bongar conta com os discos 29 de Junho, Chão Batido Coco Pisado, Festa de Terreiro, Samba de Gira e Festa de Terreiro (este também em DVD).