O ERRO Grupo é um coletivo de Florianópolis (SC), formado em 2001, que busca experimentar a arte como intervenção no cotidiano das pessoas e sua interdisciplinaridade de conceitos e áreas de expressão. Diferentes linguagens artísticas, como performance, teatro, música e artes visuais, se misturam, invadem o espaço público e debatem seus diferentes usos. Com uma linguagem artística de fronteira, o grupo ‒ formado por Luana Raiter, Luiz Henrique Cudo, Pedro Bennaton e Sarah Ferreira ‒ pesquisa a exploração do espaço urbano e, por meio da interação com o público, reflete seus diversos significados.

O ERRO se apresentou na Virada Cultural no dia 20 de junho de 2015, com a peça/show Geografia Inutil, e, na ocasião, conversou com a equipe do Observatório Itaú Cultural. Em um encontro na Praça da República, batemos um papo sobre a gestão e a atuação do grupo, políticas culturais, espaço urbano e as reflexões que o ERRO propõe para os diferentes usos da rua.

OBS: Qual é a origem e o que motivou o surgimento do ERRO Grupo?

ERRO: Essa é uma pergunta corriqueira e, às vezes, a gente acaba escrevendo um texto e repetindo sempre o mesmo, mas é uma pergunta importante. O grupo surgiu em 2001 na Universidade Estadual de Santa Catarina [Udesc]. Éramos todos estudantes da universidade do estado e, por causa de uma greve estudantil, que durou uns 120 dias, nós, do teatro, começamos a nos encontrar com estudantes de outras áreas ‒ das artes plásticas, da história ‒ e ocupamos a reitoria por 20 dias. E, nesse convívio diário com várias disciplinas, começamos a fazer ações que pudessem chamar a atenção da sociedade para a greve. Quando a greve terminou, sentimos falta desses encontros com o pessoal das artes visuais, porque discutíamos temas semelhantes, mas com visões diferentes. Então, resolvemos fazer um grupo de pesquisas e reuniões, que acabou resultando no ERRO Grupo. Como era formado por gente que vinha do teatro e das artes visuais, optamos por um espaço que não fosse uma coisa nem outra. A rua também traz uma visibilidade diferente, é sempre um público diferente.

Essa é uma pergunta à qual, com o passar dos anos, fica mais difícil responder, porque desse grupo inicial restaram dois integrantes: Luana e Pedro. Em 2002, o Cudo participou da peça Carga Viva, mas como colaborador, e entrou posteriormente. A Sarah entrou em 2006. E esse é o núcleo atual do grupo. Ana Paula Cardoso, Priscila Zaccaron, Julia Amaral e Michel Marques já participaram desse núcleo, em momentos distintos, por períodos de seis anos ou mais, e são pessoas importantíssimas para a nossa história. Mas como o Cudo foi um colaborador e a Sarah também passou por esse processo, temos outros colaboradores que orbitam o grupo, participam de alguns projetos e acabam entrando ou não para o grupo. Esse é um processo que flui de maneira natural; não é um tempo empresarial que determina isso, é um tempo artesanal. Não tem método nem resposta correta, acontece de maneira natural.

Como funciona a gestão do grupo?

A gestão é compartilhada, tem diferentes núcleos de inteligência e trabalhamos de acordo com as capacidades de cada um. E também variou bastante de acordo com a vontade de participar dessas pessoas que já integraram o grupo. Nós não temos uma produção externa, não há uma empresa produzindo a gente. Em 14 anos de grupo, somente em duas ocasiões tivemos empresas terceirizadas de produção. Então, o grupo se caracteriza por essa autoprodução; a figura do produtor é meio movediça e funciona como um rodízio – cada situação tem um integrante como produtor. Se existisse a figura do produtor desde o início do grupo, ou mesmo agora, essa gestão estaria deslocada do núcleo de criação. A gente percebe que são coisas diferentes, mas é algo da origem do grupo nos refazer: a gestão, a produção e a criação estão em constante diálogo.

E para a manutenção do grupo, vocês recorrem a editais? Se sim, a quais?

Sim, e tem muito a ver com a própria maneira como a gente se organiza. Trabalhamos sempre em cima de editais de incentivo à cultura e é onde conseguimos recursos para viabilizar nosso trabalho. No momento de escrever um projeto para concorrer a um edital traçamos estratégias para produção. Hoje em dia essa dinâmica funciona de maneira orgânica, em que um projeto já alimenta o próximo, pois a pesquisa do grupo estabeleceu uma solidez e uma fluidez constantes. Recorremos a editais estaduais e federais, mas os federais são mais frequentes. Editais municipais destinados ao teatro não existem em Florianópolis. Quando houve, foi um fato isolado. Existe uma lei municipal de repasse de recurso à cultura, mas a consideramos pífia e nunca a utilizamos.

Os editais federais estão mais consolidados, têm essa constância maior e você já sabe quando eles vêm. No momento estamos finalizando um edital federal da Funarte [Fundação Nacional de Artes], o Myriam Muniz, que é um projeto de ocupação do espaço público. Estamos há cinco meses ocupando um espaço onde promovemos debates públicos – foram seis até o momento – e desenvolvemos outras atividades, como apresentações e oficinas. E isso foi uma tomada de consciência. Houve um tempo em que ter uma sede era algo importante do ponto de vista da gestão, e até tivemos uma durante um período, mas em dois anos com sede compreendemos que a gestão estava sendo do espaço, e não do grupo e de suas criações. Foi ficando mais claro também que o grupo funcionava melhor na rua – a interação e a participação do público são muito importantes. E, nesse sentido, por que não fazer inclusive nossas reuniões de produção na rua? Para o segundo semestre fomos contemplados com um projeto estadual e continuaremos fazendo a ocupação do espaço público com debates em Florianópolis.

Mas só para finalizar essa questão do financiamento: nós não utilizamos captação direta via leis de incentivo à cultura, como captar fundos com empresas. Optamos pelos editais públicos. Nós utilizamos a Lei Rouanet para o Programa Petrobras Cultural, por meio de edital público que ganhamos de 2010 a 2012. Não buscamos captação com empresas porque você passa pela viabilização do projeto e depois tem de se submeter a outro tipo de negociação no momento da captação, no qual geralmente têm de ser feitas concessões, e esse é um tipo de política cultural que a gente não faz. Nós optamos por não recorrer a esse modo para não ter de negociar nem ceder aos interesses do marketing.

Participamos também do Rumos Teatro, do Itaú Cultural, mas se trata de um edital público e criterioso no sentido artístico, e não de marketing. Teve também o edital da Petrobras que ganhamos, em que solicitaram que colocássemos um banner da empresa no local das apresentações. Escrevemos uma carta explicando que o uso de uma peça de marketing tão explícita fugia da proposta do grupo e dificultava o fator-surpresa de nossas intervenções urbanas e do projeto. Eles entenderam nossos motivos e permitiram que não utilizássemos o banner.

Conte um pouco para a gente sobre a apresentação de vocês na Virada Cultural.

Essa peça surgiu do contato com o dramaturgo romeno Peca Stefan em uma residência que o Pedro fez nos Estados Unidos em 2013. Nosso trabalho na rua entrava em contato com o trabalho que ele tem de espaços específicos ‒ no caso, a dramaturgia dele é escrita para espaços que não são o palco. Um ponto que nos unia anedoticamente era ter sonhos frustrados em relação à música. Então, fizemos a dramaturgia e depois fomos para a música: montamos uma banda chamada Geografia Inutil e lançamos um álbum. A proposta é um show, um manifesto com esse conceito musical. Cada um toca um instrumento: a Luana e a Sarah cantam e tocam maracas, o Pedro toca cajón, Cudo no baixo, e temos o Rodrigo, que é um colaborador e é o nosso guitarrista.

A ideia é que o grupo se utilize da rua, onde você pode ver uma manifestação teatral com música ou músicos muito teatrais, e a gente entra nessa região para fazer o público pensar se isso é música, se isso é teatro. A ideia é refletir sobre o mercado da arte – representamos algumas figuras durante o show, como a banda vendendo o CD ou um ator parando para tirar foto com o artista celebridade. Então, a relação da arte e do mercado está clara ali para ser refletida: ao mesmo tempo que temos o mercado das celebridades, temos a precariedade da banda. E o artista de rua aqui no Brasil passa por questões semelhantes às dos artistas de rua na Romênia: esse músico de rua não é só brasileiro, ele está no mundo inteiro.

Conversando com o Peca, a gente viu o que cada um conhecia do país do outro. Conhecíamos da Romênia: o Hagi, jogador de futebol, e a seleção romena dos anos 1990; o Drácula e a Nadia Komaneci. E ele conhecia do Brasil: a novela Escrava Isaura, que passou na TV romena, Carnaval e futebol também. Ficou claro que a construção cultural que temos de diversos países é derivada da exploração de determinadas áreas pelo mercado, o que obviamente é de interesse de alguns setores, mas acaba por criar estereótipos culturais passados de geração para geração. Isso afeta não apenas o que os outros acham que um país possui, mas os próprios habitantes desse país, de certa forma, que sentem que devem cumprir, honrar ou ao menos mostrar conhecimento desses elementos culturais ressaltados no exterior, que muitas vezes em nada refletem uma verdadeira aproximação com o cotidiano de uma cultura.

Vocês vêm do teatro, havia também um pessoal das artes visuais no início do grupo e, na Virada Cultural, vocês estão com essa proposta mais musical. Quais são as áreas de expressão que vocês trabalham e como se definem nesse sentido?

No ano passado fizemos uma exposição, nossa segunda, além de participar de uma exposição do Grupo Empresa de Goiânia no MAR [Museu de Arte do Rio], no Rio de Janeiro, onde houve uma residência e participamos também. Somos quatro pessoas formadas no teatro, mas ao mesmo tempo cada um do grupo tem vontades, inspirações e competências próprias que tocam outras áreas. Transitamos por diferentes universos. Estamos trabalhando há mais de uma década com intervenções urbanas e performances; aprendemos a trabalhar nessa região limítrofe, e o teatro favorece isso. Temos uma visão alargada de teatro. A gente pode fazer teatro e o público achar que estamos fazendo outra coisa ‒ e está tudo certo. Aos poucos, fomos nos desprendendo dessa ideia de determinar que o que fazemos é estritamente teatro, até porque na rua as coisas se perdem e é nesse perder das coisas que a gente acha o teatro. Se fazemos uma intervenção como a Geografia Inutil, em que estamos tocando – e como uma banda – e alguém passa na rua, olha e acha que somos músicos, para nós está tudo bem, porque estamos atuando tão bem que nos passamos por músicos.

O ERRO está sediado em Florianópolis, mas no ano passado vocês estiveram em Barcelona, Espanha, agora estão em São Paulo, na Virada Cultural, e já andaram bastante por aí. Como se dá essa interação com o espaço urbano? As questões pelas quais vocês passam em Florianópolis podem ser replicadas em outras cidades ou cada espaço é um espaço?

Engraçado vocês citarem o exemplo de Barcelona. Foi algo mambembe para o grupo, uma experiência totalmente diferente, porque não havia público nenhum nos esperando, não era algo programado. As pessoas paravam, olhavam e estranhavam: “Será que isso é música? É teatro? Eles são mesmo brasileiros?”. Houve um estranhamento, mas a recepção foi boa e, para nós, foi uma experiência bem interessante, pois em Florianópolis, por exemplo, temos um público que nos conhece, que em algum momento já nos viu. Quando mudamos de cidade, tanto pelo público quanto pelo espaço, muda bastante a experiência do trabalho. Fomos à Europa para fazer uma turnê pela Romênia – dez apresentações em Bucareste e em mais três cidades do interior –, acabamos nos apresentando em Paris, onde tivemos o apoio da prefeitura e de amigos e colegas ligados à [universidade] Sorbonne, que nos ofereceram uma estrutura de produção, mas a ida a Barcelona foi uma esticada e propiciou essa experiência.

Fica muito claro que existe uma diferença enorme entre se apresentar a um público convidado, um público passante, um público que fala sua língua e outro que não, do qual você tem compreensão sobre sua cultura ou não, enfim... Essas diferenças são enriquecedoras, pois flexibilizam os sentidos do trabalho e exigem uma abertura maior dos performers. Isso sem contar com as diferenças arquitetônicas e urbanísticas, que variam bastante de cidade para cidade, mas curiosamente mantêm-se elementos similares apresentados de formas distintas. A boca de lodo, a lixeira pública, cada uma do seu jeito, mas presentes. Esses elementos são mais fáceis de assimilar, pois normalmente pesquisamos o espaço antes de irmos a uma cidade, seja por Google Maps, Street View, seja por telefonema para amigos que moram no lugar, além de tentarmos chegar alguns dias antes para mapear e experimentar esse espaço. Nossas ações precisam ocupar esse terreno, se apropriar dele.

O ERRO Grupo propõe uma reflexão a respeito do espaço urbano, de como se dá a ocupação e de como interagimos com ele. Nesse sentido, como vocês enxergam a ocupação do espaço público por meio da cultura e qual a importância desse ato nos dias de hoje?

De alguns anos para cá, sentimos que o espaço urbano está mais visado e mais disputado, a especulação imobiliária está mais clara, o marketing fazendo uso da cidade também está mais claro, mais exposto nesse sentido. As revitalizações, e o que isso acarreta, os processos de gentrificação – esse é um processo que ocorre em São Paulo, mas também ocorre em Bucareste, Barcelona, Berlim. Ocorre no mundo todo. A rua está ganhando outra importância, há também usos coletivos de ocupação das ruas, e São Paulo mesmo vive isso agora com as ciclovias. As manifestações de junho de 2013 e o movimento Occupy já eram um indício de que o uso da rua estava passando por transformações.

Em relação ao uso artístico do espaço público, há toda uma regulamentação e uma burocracia que não existiam quando o grupo começou – e nos posicionamos contrários a isso. Não encaminhamos pedido de autorização à polícia para nossas manifestações. Nós nos baseamos no artigo 5o da Constituição Federal, inciso IX, que diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e no inciso XVI, que diz que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. Então o que fazemos é encaminhar um comunicado à Polícia Militar e à Guarda Municipal avisando que em tal horário estaremos fazendo nossas apresentações em tal lugar, com estimativa de tantas pessoas e que se trata de uma manifestação artística. Tem todo um desgaste, mas nós nos resguardamos nesse sentido – consultamos advogados não para entrar em um embate, mas para assegurar que a atividade proposta irá ocorrer.

É de suma importância a tomada de consciência que vemos acontecendo sobre o espaço da cidade ser um espaço de todos, um espaço democrático que tem como principal foco o bem-estar geral. É necessário fazer uso desse espaço com toda a convicção de que ele é um espaço de todos e, portanto, seu também. Sem aceitar concessões à liberdade de expressão, a venda e o uso privado desse espaço. Isso é algo que leva algum tempo para ser de fato interiorizado, mas acreditamos que estamos avançando, finalmente, com a força devida para nos opormos à violenta supressão que vem sendo feita dos espaços públicos em prol dos interesses privados.

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