por Nayra Lays

 

"Sou capricorniana, filha de Iansã e negra. Eu planto, cozinho, preparo banhos, benzo e faço defumação, tudo com as ervas do meu quintal. Com o que sobra, faço tecelagem. E, de tudo isso, eu conto histórias."

Aos 54 anos e estudiosa de si, Dona Jacira redescobre a vida e o seu próprio protagonismo (imagem: Toni C.)

Dona Jacira começa o dia cedo, por volta das 5h30, se alongando e definindo qual setor de sua horta receberá os cuidados da manhã. O andar de cima da casa abriga as plantas que necessitam de sol pleno, e o de baixo as que estão prontas para serem colhidas. Enquanto sou apresentada à casa por Huiris Brasil, seu produtor, observo que, assim como as sementes e mudas, as palavras estão por todo lugar. Eu me vejo esbarrando em cartas, trechos de livros e quadros com frases, até chegar ao andar onde a encontro colhendo couve e hortelã para nosso almoço. Já me sinto bem-vinda.

Ao lado da frase "a cura está aqui", escrita de um vermelho urucum próximo à porta da cozinha, ajeito uma cadeira para começarmos nossa conversa, enquanto ela cozinha e vê, pela janela, parte da Serra da Cantareira. A rotina é corrida e é no tempo de preparação do alimento que conversamos sobre algumas das muitas trajetórias que atravessam e formam esses territórios. Território geográfico, cujo endereço é conhecido há mais de 20 anos, e, mais profundamente ainda, território-corpo, que foi redescoberto há bem menos tempo e segue sendo investigado. Ao ouvi-la falar deste, sinto ainda mais franqueza, leveza e gosto.

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Nossa travessia é aberta com Dona Jacira compartilhando um de seus maiores aprendizados até aqui: levantar algumas das coisas que suas ventanias derrubaram. Para isso, despediu-se de vínculos que não tinham mais sentido e refez outros, como com sua mãe, há dez anos. A ausência materna na infância, que por muito tempo lhe causou raiva, foi entendida quando sentida na própria pele: assim como a mãe, ficou viúva tendo filhos para criar e nem sempre pôde suprir todos os desejos das crias. Viu-se, então, fazendo a mesma rota ao ir atrás de sustento e, por isso, passar menos tempo do que gostaria em casa. Hoje, ela identifica o colonialismo e a forma que mulheres eram e são educadas como os verdadeiros inimigos, não sua mãe. Até as discordâncias de opiniões entre ambas, agora, são vistas simplesmente como divergências entre caminhos.

“Eu comecei a pensar comigo: qual é a relação entre essa nossa solidão e a desagregação familiar, que, em vez de nos fazer ir em busca dos nossos, faz com que criemos pequenos ódios por eles?”

Aos 54 anos e estudiosa de si, até os objetos da casa se tornaram materiais de sua autopesquisa. Por alguns instantes, ela para o que está fazendo no fogão, tira do armário uma tigela de cerâmica e me conta sua história com Eduardo, um homem com quem se relacionou e que tinha como "defeito de família" o racismo. A tigela havia sido um presente dado a Eduardo pela falecida mãe, que somente mais tarde Dona Jacira descobriria que fora sua professora de catequese, que sempre fazia questão de demonstrar o quanto não gostava da presença das crianças negras em suas aulas. Os medos de infância e as histórias vividas com Eduardo no quintal, por muito tempo lembradas pela tal tigela – não descartada por ter agora outro lugar emocional –, foram registrados em uma série de livros escritos durante um ano, sobre experiências em relacionamentos.

"Sou eu me avaliando pelas passagens da lua e vendo como me apaixono e desapaixono, e como uma paixão pode fazer da vida da gente uma coisa boa ou não."

Jacira Roque de Oliveira é escritora e publicou o seu primeiro livro, Café, em 2018 pela editora LiteraRUA (imagem: Toni C.)

Por falar em paixões, foi após se declarar a uma mulher que Dona Jacira chorou de novo, passados tantos anos acreditando que isso era perda de tempo. O desaguar foi crucial para um reencontro com sua espiritualidade, desta vez, longe dos lugares que já havia frequentado em busca de um “Deus que não a aceitava”. O que ela entendia como uma entidade, que por muito tempo lhe apareceu, ensinou uma lição de casa que não pode ser esquecida nunca: amar é possível, e não se restringe às relações com outras pessoas. Veio daí a percepção de que era preciso começar a observar, tocar e, principalmente, sentir prazer consigo mesma, afinal, o corpo que por anos serviu somente aos homens e à geração dos filhos deveria também se tornar parte dessa retomada do território-corpo que a compõe. Era hora de se ouvir.

"Desde lá, todos vieram e se foram, mas Iansã permanece, pois é minha crença, meu caminho."

Sua intuição – e o afeto pelo protagonismo de sua própria vida – a levou a promover encontros em casa para falar sobre cultivos de plantas diversas. Em 2018 foram realizados 12 encontros em seu quintal, com o objetivo de criar outras memórias, histórias e energias no espaço e compartilhar os "saberes e fazeres" passados por sua mãe, para que eles não se percam ou sejam cooptados. Nesses encontros, que inicialmente contavam com até 20 pessoas, todas e todos traziam informações sobre seu próprio mundo, a respeito de assuntos diversos, e, no final, tudo acabava em samba e batuque. Em paralelo, contações de histórias e visitas a outros espaços na cidade para se colocar a mão na terra também acontecem a todo vapor. No segundo semestre de 2019, Dona Jacira se prepara para lançar uma marca de geleias, sabonetes, cremes e outros produtos feitos artesanalmente e em pequena escala. Uma das primeiras apresentações da marca, aliás, acontecerá na Aparelha Luzia, no centro de São Paulo, no dia 22 de setembro, e contará com degustações.

"Eu vou pôr marca nas coisas que já estamos fazendo há muito tempo."

Os encontros têm o objetivo de criar novas memórias e histórias, além de trocar energias e experiências a respeito de diversos assuntos (imagem: Cláudio Irennio)

A tarde começa e, logo após o almoço, Dona Jacira pede licença para deixar a mesa e se preparar para os compromissos do resto do dia. Na saída, ao final de nossa conversa, ela me presenteia com um exemplar de Café, seu livro de estreia, e me mostra um quadro grande. Emociono-me ao lembrar que eu a conheci no dia em que a foto foi tirada, durante uma de suas contações de histórias no Grajaú. Aquele dia foi tão marcante para mim que me inspirou a escrever versos de “Fartura de Vida”, uma das minhas primeiras músicas:

Eu consigo me lembrar de dias negros,
Até hoje são meus preferidos,
Os mais bonitos
Elas me abraçaram, cantaram,
Dona Jacira contou suas histórias
E nós sorrimos

Veja elas, as palavras, permeando tudo de novo. Sendo antídoto, ponte, intenção e junção. Da Zona Sul à Zona Norte. Dos 22 aos 54 anos. Da vida a ser descoberta à vida redescoberta. Hoje, o que me curou mais uma vez foi ouvir as palavras de quem já entendeu que, apesar dos pesares, de fato, a vida é imensa.

Obrigada, Dona Jacira. E até breve.

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