por André Seiti

 

Em um futuro distante, quando olharmos para o ano de 2020, quais as lembranças que virão a nossas mentes? Quais sensações serão trazidas desse período, mais especificamente do período em quarentena? O que realmente nos dirão as fotografias criadas nesses tempos de exceção? As respostas a essas questões talvez não sejam as mais objetivas, uma vez que nossa memória, muitas vezes, também não é. Mas é exatamente essa subjetividade que pode nos dizer muito a respeito do mundo em que vivemos – seja no passado, ou no presente – e da própria condição humana em si.

Isolado com a família nos arredores de Belo Horizonte, durante a quarentena o artista mineiro Pedro David retratou cenas de um universo à parte no ensaio Insular, no qual buscou uma possibilidade de fuga da realidade, mas sem ignorar a carga de tensão que rodeava sua “ilha”. “O artista, insatisfeito com o mundo em que vive, constrói outros. Ele não registra o mundo existente, mas, sim, aquele que ele cria”, afirma. Ecoam, no entanto, nesse mundo as incertezas trazidas pela pandemia, o esforço pela proteção física e mental, a preocupação em orientar os dois filhos (que figuram no ensaio) e a frágil condição humana. “Nesse sentido, Insular é o resultado de escolhas inconscientes que refletem sentimentos e fazem uma leitura do mundo atual, por meio de uma linguagem universal”, finaliza.

Já a linguagem escolhida pela artista carioca Gabriela Massote Lima, no ensaio O que Há Entre Nós, Amor?, é uma narrativa permeada pelos vazios. Refletindo sobre a “ameaça da ausência de um ente querido, de um possível apagamento em virtude da pandemia”, ela utiliza recortes e colagens de fotografias antigas, marcadas por lacunas. “Toda imagem fotográfica é a demarcação de uma ausência, um recorte que prevaleceu sobre algo que foi deixado de fora. Seja físico ou subjetivo. Que não foi escolhido ou simplesmente não pôde ser fotografado por ser abstrato, mas não deixa de estar lá, presente em sua ausência. O que há entre todos nós, na realidade, é quase sempre algo que não conseguimos dizer, que nos escapa.”. Sobre o porquê das imagens antigas, explica: “Fotografias antigas não falam só do passado. Falam de quem somos hoje. São evidências de mitos e ícones que sobreviveram por gerações e que precisam ser mudadas. Quantas fotos repetem o modelo patriarcal nos retratos familiares? Fotos antigas denunciam como absorvemos padrões da arte renascentista ou ainda repetem um modelo de submissão da mulher, e até o jeito de fazer política. Enfim, são fósseis que podem ser utilizados como ferramentas para a transformação do mundo”.

Mas nem sempre essa narrativa transformadora se dá em um plano mais abrangente ou universal; sendo a fotografia também um meio de transformação em um âmbito mais íntimo e afetivo. Com o ensaio Da Vontade de Ver o Mar Onde Ele Não Está, o artista piauiense Maurício Pokemon digitalizou negativos de filmes queimados e os aproximou em zoom, criando seus postais de “mares imaginários”. “A saudade e o medo acumulados me faziam pensar todos os dias nos meus avós, e potencializava a vontade de viver o ver o mar com eles. O mar carrega uma sabedoria da escuta e do lidar com ciclos da vida, e essa percepção ficou mais presente em mim com a pandemia.” Vale ressaltar que seus avós, que moram há 85 anos no interior do Piauí, nunca pisaram no litoral. “Esse trabalho fala muito de saudade, o que tem, de algum modo, relação com memória. É uma saudade que mistura os tempos: do passado, do desejo e do futuro. Eu já tenho saudade desse dia em que vou estar com meus avós na beira da praia. É um dia bonito de viver e imaginar.”

Com curadoria de André Seiti e Anna Carolina Bueno, a série analisa algumas fotografias selecionadas pelo edital Arte como Respiro. Os textos são uma pequena amostra do que será apresentado na publicação que reúne todos os escolhidos na categoria Artes Visuais e que será lançada em dezembro de 2020.

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