Em fotografia: O cotidiano fantástico
12/10/2020 - 13:00
por André Seiti
O confinamento imposto pela pandemia significou, para muitos, uma quebra na normalidade das coisas: o cotidiano tal qual o conhecíamos, mesmo que inalterado quanto à rotina, já não era o mesmo. Isso porque o mundo já não era o mesmo também. Sob um olhar fotográfico, o dia a dia em reclusão pôde se transformar em um universo fantástico e, ao mesmo tempo, banal, que subverte sentidos e traz à tona reflexões.
Com o ensaio Simbiose, a arquiteta e artista visual baiana Gabriela Gomes busca uma reaproximação entre humano e natureza, ao representar, por meio de autorretratos, uma planta realizando tarefas como tomar café, ler um livro, trabalhar no computador ou secar o cabelo (no caso, as folhas). “Não acredito muito na frase ‘estamos no mesmo barco’; sinto que estamos, sim, na mesma maré, mas cada um navegando dentro do seu mundo”, diz. “O que a pandemia trouxe para cada um de nós é algo muito particular, mas acredito que, em termos amplos, houve um grande retorno às nossas raízes. Não fisicamente, mas uma busca da conexão, no campo mental e intelectual, com a sabedoria e a abundância da natureza.” Sobre a conexão entre o corriqueiro e o inusitado, ela acrescenta: “Vejo no banal algo desprovido de originalidade, mas, como toda simbiose é uma junção, uma soma, a adição de elementos fantásticos se torna pura expressão do ser. Sinto que nesta série está bem explícito isto: o cotidiano de uma forma ludicamente surrealista”.
É o surrealismo também o fio condutor da série Jogo de Paciência, da artista visual catarinense Ana Sabiá. Seu conjunto de dípticos apresenta retratos e autorretratos (nos quais seu rosto é escondido) interagindo com objetos, plantas e animais, em um cenário formado por um lençol. “Essa escolha de suprimir minha face é um esforço consciente com o intuito de que o trabalho dialogue para além da vivência individual, abarcando também experiências coletivas”, explica. Já a utilização do lençol com uma abertura central, herdado de uma tia, foi o ponto de partida para a execução da série. “Um lençol branco é um elemento que perpassa muitas simbologias, do acolhimento do lar à assepsia hospitalar. Aquele lençol-moldura tornou-se minha ‘folha em branco’. Cada objeto é escolhido pela sua representação formal, utilitária, simbólica ou afetiva, de acordo com os eventos que acontecem fora do isolamento, mas que interferem na realidade isolada e vice-versa.”
Não é apenas a leitura do mundo sob um viés surrealista que ambos os ensaios partilham, mas também preocupações com cenários que vão além da pandemia. “Penso que não é necessário chegar ao estado a que chegamos de distanciamento e falta de respeito à natureza para ver que o caminho humano está ultrapassado; a natureza, sim, é quem vive no futuro”, acredita Gabriela. Já para Ana, é possível traçar um paralelo entre o movimento encabeçado por Salvador Dalí e René Magritte e o nosso cotidiano atual: “O surrealismo foi decorrente de uma consciência da extrema desilusão social diante do falimento dos ideais humanos”, explica. “Passado um século, em pleno 2020, governantes assumem posturas fascistas, direitos humanos são confiscados, a natureza é vendida, a violência, além de física, é virtual, as diásporas seguem com mais mortos, os super-ricos detêm o usufruto ambiental, capital e humano, as expressões artísticas são censuradas, a ciência é desvalorizada… O surrealismo, em sua definição popular de justaposição de elementos contraditórios que se compõe, está entranhado na vida, particularmente na vida do povo brasileiro.”
Com curadoria de André Seiti e Anna Carolina Bueno, a série analisa algumas fotografias selecionadas pelo edital Arte como Respiro. Os textos são uma pequena amostra do que será apresentado na publicação que reúne todos os escolhidos na categoria Artes Visuais e que será lançada em dezembro de 2020.