por Um Por Todos - Kiko Dinucci

 

A minha primeira grande caminhada foi com o meu pai em Guarulhos (SP). Andamos a pé do bairro onde morávamos até o centro da cidade. No caminho passamos por uma fábrica de remédios, lá havia lindos carneiros em um extenso gramado e eu enlouquecia vendo esses animais como se estivesse em um zoológico. Somente muito tempo depois eu me dei conta de que esses carneiros eram usados como cobaias para experiências, possivelmente bichos mutantes que viveram pouco ou se transformaram em alguma aberração do mundo científico.

No curto período em que trabalhei como office boy, na adolescência, e tive que me embrenhar pela cidade, comecei a ganhar gosto por andar a pé. Nesse período, em que nem sempre eu tinha dinheiro para pagar o ônibus ou o metrô, caminhar foi uma saída. Grandes descobertas geográficas na cidade de São Paulo se fizeram: descobri que a Avenida Tiradentes em linha reta dava no Vale do Anhangabaú, que a Avenida Liberdade dava no Paraíso e que a Avenida Paulista, por sua vez, se percorrida por inteiro, terminava na Rua da Consolação e que, descendo à direita, dava novamente no Anhangabaú.

Toda grande avenida sempre carrega consigo algum desfecho, alguma revelação. Percorridas essas grandes extremidades, era a hora de conhecer as entranhas, as veias, as ruas curvas, bifurcações, encruzilhadas, vielas e esquinas, as vísceras da cidade. Creio que não é possível conhecer uma cidade apenas por automóvel ou coletivos. Quantas vezes eu descobri algo andando a pé depois de ter passado de ônibus no mesmo local por anos, sem nunca notar. O caminhar nos eleva a outro tempo/espaço, outra respiração e percepção do mundo.

O primeiro grande andarilho que conheci foi um cara do meu bairro de quem nunca soube o nome. Eu e meus amigos o apelidamos de Elvis por causa de seu visual rockabilly do terceiro mundo. Ele sempre estava sozinho a caminhar pelo bairro, às vezes em silêncio ou resmungando algo incompreensível. Ele não tinha amigos, pelo menos eu nunca o vi com ninguém. Sua cabeça era pequena em relação ao corpo magro. Para qualquer lugar que eu fosse, sempre via o Elvis surgir do nada, passando qual um cometa solitário. Não suportando mais andar em círculos pelo bairro, Elvis começou a explorar os limites da Avenida Monteiro Lobato: ia e voltava do centro da cidade. Não sei que fim levou o Elvis ou se ele ainda anda está vivo ou sequer existiu, mas percebo que somente o caminhar dava algum conforto à sua alma. Talvez se Elvis ficasse estático, sem se movimentar, sua angústia chegaria à exaustão e algo de ruim poderia acontecer. Elvis sabia, quiçá de forma inconsciente, que andar poderia dar alguma luz à sua cabeça.

Sempre pensei melhor andando. Não falo de um pensamento racional ou linear, mas da mais pura reflexão livre. Ao andar, pensamos de maneira mais ágil e desordenada, quase abstrata. As ideias parecem respirar pelos poros e se libertam na pele suada. Em casos de discussões, brigas, decisões drásticas, o melhor é andar para se acalmar. Situações tensas sempre me levaram a caminhar – pare tudo o que estiver fazendo e ande –, acho que é assim que nascem os andarilhos, alguns nunca mais voltam, talvez por não chegarem a nenhuma solução ou pela possibilidade de serem sucumbidos pelo êxtase do movimento constante e infinito.

Caminhar à procura de luz para os problemas da vida me fez certa vez andar a pé de Cumbica até o centro de São Paulo: Avenida Monteiro Lobato, Vila Fátima, Macedo, Bom Clima, centro de Guarulhos, Avenida Guarulhos, Ponte Grande, Avenida Gabriela Mistral, centro da Penha, Avenida Celso Garcia, Carrão, Tatuapé, Belenzinho, Brás, Avenida do Estado, Luz, República. Eu me lembro de passar a mão no rosto enquanto eu descansava no meio do caminho, no interior de uma igreja no Brás, e minha cara estar empoeirada. Sempre que pratiquei alguma caminhada radical, voltei para o lar calmo e exausto, como se tivesse voltado de alguma batalha ganha.

Mas o caminhar não serve apenas para dias turbulentos. É também poderosa ferramenta de contemplação do que está ao nosso redor. Podemos, enfim, perceber a arquitetura, fachadas, comércios inusitados, cheiros, luzes, sons, intervenções do destino. Desenvolvi com o tempo a estranha mania de, a partir da calçada, olhar para janelas de edifícios ou casas. Não chega a ser um voyeurismo, nesse caso a figura humana não me interessa. Reparo apenas no cenário que aparece na janela, geralmente é o lustre ou a luz principal do ambiente acompanhados de alguns detalhes que possam aparecer, como plantas, armários, estantes, abajur. Essas imagens me passam alguma sensação de conforto.  Ao fitar da rua essas janelas, eu me imagino ocupando os espaços como se eu fosse um invasor de propriedades, como se falasse para o proprietário “Dê o fora, essa casa vai ser minha por alguns minutos” e deitasse no sofá, ligasse a TV e me entregasse ao deleite de um cochilo trivial.

Uma vez passei por um cortiço na Rua João Teodoro, entre o Brás e o Pari, e avistei da rua a janela superior do sobrado. A lâmpada do teto era pendurada por fios à mostra, todos remendados com fita isolante. Avistei também um armário velho e o segundo andar de um beliche com cobertores enrolados e bagunçados. Tive imensa vontade de dormir naquele beliche alheio. Essas visões são rápidas, duram segundos. Eu me sinto como se roubasse pela janela a alma de determinado espaço interno. Andar a pé pode nos levar a esses misteriosos universos, de lembranças perdidas ou jamais vividas, ou pode nos trazer de volta à nossa ancestralidade nômade.

Hoje em dia ando bem menos do que gostaria. Gosto de caminhar da Barra Funda até o centro, cortar caminhos por galerias e, quando dá tempo, procurar por lojas de LPs. Mesmo que a dignidade humana e as cidades estejam morrendo, mesmo com as cidades cada dia mais violentas, mesmo que as cidades estejam sendo demolidas, aconteça o que acontecer, continuarei a andar a pé, nem que seja sobre escombros, sobre ossos e destroços, nem que seja sobre o deserto inabitado da nossa memória.

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