Economia periférica e solidária | Thiago Vinicius
30/11/2017 - 16:50
Em entrevista, Thiago Vinicius fala sobre o Banco Comunitário União Sampaio e sobre a criação da Agência Popular Solano Trindade, que trazem o desejo de potencializar o desenvolvimento econômico e cultural das regiões periféricas em que atuam. Essas ações vêm transformando as relações com os espaços e a comunidade de forma criativa, experimental e sustentável, além de formar grandes redes de parcerias.
Thiago Vinicius é produtor cultural e mora na periferia da Zona Sul de São Paulo. Promove ações ligadas à inovação social em alimentação, consumo, nutrição, economia solidária, cultura periférica, finanças sociais e start-ups. Produz há quatro anos o Festival Percurso, além de viabilizar agendas culturais em parceria com coletivos e educadores. Atualmente estuda sociologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp/SP).
Fale sobre o banco comunitário e o seu funcionamento. O que o difere de outro banco?
O Banco Comunitário União Sampaio surgiu em 2009 e oferece microcrédito – crédito produtivo a empreendedores da comunidade –, juntando pessoas que consomem a moeda local, o “Sampaio”. A principal diferença está na relação que o banco tem com as pessoas. Aqui não consultamos Serasa nem SPC [Serviço de Proteção ao Crédito], só a própria comunidade, ou seja, as lideranças comunitárias, que avaliam o perfil de quem está solicitando apoio.
Por exemplo, trabalhamos com formas diferentes de empréstimo, pois temos perfis de pessoas que precisam de crédito para consumo, que é para comprar comida, e temos pessoas com condições melhores, iniciando novos empreendimentos. Para esses fornecemos o empréstimo produtivo com juros de 2%. Dessa forma diminuímos os juros, que, na sua subjetividade, representam a desconfiança de quanto mais pobre você é mais juros você paga. O banco comunitário muda essa relação colocando a confiança na frente e contribuindo para o desenvolvimento local.
Como surgiu a ideia da moeda social e como os moradores estão lidando com ela?
A ideia surgiu como mecanismo para fortalecer o consumo na comunidade e integrar mais as pessoas, num processo de gerar confiança e valorizar as potencialidades que temos aqui. As pessoas reagiram bem, até porque quem tem fome tem pressa, e quando você passa por isso não precisa teorizar muito.
Quais foram os impactos no desenvolvimento econômico da região após a criação da moeda?
Já circulamos mais de 1 milhão de reais com todos os empréstimos que fizemos. Isso demonstra o potencial da favela – os moradores olham mais para o seu próprio bairro, acreditam na relação entre comerciante e cliente e que o bairro vai se desenvolver.
Após a criação do Banco Comunitário União Sampaio, temos o bairro com mais escolas do Campo Limpo, ou seja, o banco atraiu atenção. Os moradores e os comerciantes sempre falavam da falta de escolas, e hoje temos três escolas e creches no bairro, mais saúde, mais parcerias, mais lazer, e a visão de lucro do banco está conectada com o progresso comunitário.
E a Agência Solano Trindade? Pode falar sobre ela e as atividades que são realizadas?
A agência surgiu em 2012 e a ideia era fortalecer o fomento do microcrédito para empreendedores culturais que trabalhassem com moda, gastronomia, artesanato, literatura marginal, tecnologia, inovação, audiovisual, festas, eventos de médio e grande porte, apoio à produção, acesso à rede de produtores e a meios de produção em que interagem profissionais e artistas.
Atualmente, articulamos uma grande rede e conseguimos produtos culturais de grande qualidade e performance, os quais a equipe de comercialização a todo momento oferece aos principais eventos de São Paulo, ao Sesc, à Virada Cultural, a empresas privadas etc. Quando se comercializa um desses produtos, a nossa rede imediatamente se alimenta e potencializa artistas que historicamente sofrem grandes dificuldades de acesso a editais, fomentos públicos e privados. Então resolvemos arregaçar as mangas e articular a economia solidária, a cultura periférica, as redes e as trocas.
Para dar um exemplo, realizamos o Festival Percurso – Periferia e Cultura em Rede Solidária, evento de grande porte realizado na Praça do Campo Limpo, onde mais de 40 mil pessoas já viram nomes relevantes da música, como Alafia, Rico Dalasam, Bahiana System, Flora Matos, MV Bill, Eliana de Lima, Sandália de Prata, Racionais MC's. Assim, proporciona-se um grande encontro em que a cidade toda vem para a periferia, o que traz novas reflexões. Acredito que as principais respostas da cidade (sobre seu melhor modo de organização, sobre ser mais inclusiva) e da sociedade hoje estão na periferia; não podemos pensar a cidade com um olhar do centro para fora.
Em entrevista ao Observatório, Chico Pelúcio, do Grupo Galpão (de Minas Gerais), comenta as dificuldades de pensar o planejamento e a gestão das atividades em longo e médio prazo, por uma série de fatores que envolve desde a falta de políticas culturais até a falta de recursos. Como a agência trabalha essa questão do financiamento de suas atividades e os desafios para sua sustentabilidade?
Desde 2014 vem diminuindo drasticamente o apoio a projetos na periferia, à juventude, às mulheres e à cultura. Diante desse cenário começamos a realizar alguns projetos, como o turismo de base comunitária – vivências na periferia destacando os pontos culturais –, fazendo feijoadas e almoços para custear os custos fixos. Neste momento estamos com uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Kickante, porque acreditamos na rede e no potencial solidário dela. Gostaria de aproveitar e pedir a todos que nos apoiem.
Observamos que fazemos projetos de alta relevância na sociedade, com impacto não só na periferia. As pessoas que recebemos aqui, que fazem parte de outros cantos da cidade e de outras classes sociais, admiram esse trabalho, e é perceptível a mudança de visão que passam a ter da favela – elas veem o potencial que temos aqui.
Como é a relação desse espaço com os moradores da comunidade local?
É uma relação de respeito, cumplicidade, amor, tensão, e não tem como ser perfeito [risos]. Amamos a nossa comunidade e fazemos parte de uma rede de empreendedores, executivos que estão trabalhando full time para trazer mais qualidade de vida para nossa periferia, porque vamos ficar aqui – hoje não se tem aquela ideia de que o político irá tirar você dali, de que você vai ficar rico e sair da periferia.
Hoje percebo que as pessoas querem ganhar dinheiro e ficar na periferia. Cada vez mais teremos “clientes de alto padrão”, que estão pagando por um serviço e querem qualidade. Muitas empresas não entenderam isso ainda, o que é melhor para nós, que podemos criar protótipos de negócios, serviços e produtos que atendam à periferia em alto grau de performance. Buscamos fazer isso em todas as nossas ações – desde o Festival Percurso até a geração de conteúdos em palestras, nossos produtos culturais são bem-aceitos pelo mercado.
Fazemos muitas atividades nas ruas, ocupando os espaços públicos, e não ficamos enclausurados em uma sede ou em determinado espaço físico. Estamos nas ruas e a comunidade percebe o que estamos devolvendo por meio das nossas ações, seja na Praça do Campo Limpo, seja nas ruas do Jardim Maria Sampaio, na Brasilândia, na Cidade Tiradentes.
Como são pensadas a programação, a agenda de eventos e a seleção dos serviços prestados pela agência?
Tudo é pensado de maneira muito orgânica. Nossos produtores ficam atentos a tudo que a periferia produz – música, dança –, numa ideia que se transformou em um grande negócio. Isso nos dá uma capacidade de articular programações, e certamente vamos apresentar aquilo que ninguém viu e que mais pra frente os jornais, as revistas e os sites irão divulgar!
Nossos serviços são customizados de acordo com a necessidade de cada empreendedor ou empreendedora. Hoje oferecemos contador, gráfica, comunicação de diversos serviços. Quem vai empreender precisa se organizar, até porque o mercado não tem dó de ninguém e às vezes é necessário estar com máquina de cartão, cartão de visita, enfim, toda a base para iniciar o negócio. Aqui é tipo um Sebrae da quebrada.
Como são as relações com o Estado – secretarias municipal e estadual de Cultura, secretarias de Educação, Ministério da Cultura?
Nosso trabalho a cada dia vem se fortalecendo e mostrando que projetos como esse melhoram a relação do cidadão com a cidade e, mais do que isso, precisam ser fortalecidos, independentemente de partidos políticos. Nós trabalhamos pela nossa periferia, que tem várias cores e que ainda nem descobrimos!
Da parte nossa, sempre nos preocupamos em apresentar um trabalho independente, mas infelizmente não conseguimos tantos diálogos como gostaríamos; estamos sem retornos e existe uma dificuldade homérica em entender um trabalho pelo qual mais de 100 mil pessoas já foram beneficiadas.
Acreditamos que para melhorar mais essa relação temos de ser apartidários e, por isso, estamos investindo forte no empreendedorismo e na geração de renda, para podermos ter mais autonomia no nosso trabalho e não ficarmos mendigando recursos e gastando horas e horas para nos inscrever num edital.
Quais foram os principais impactos das atividades da agência na comunidade?
Certamente ela envolve várias esferas – afetiva, econômica, relacional –, enfim, o sentimento de pertencimento, a "felicidade interna bruta", o orgulho de fazer parte da periferia, a autonomia, a geração de trabalho e renda, a inclusão socioprodutiva de jovens no mercado de trabalho, a valorização do poder comunitário, além de alguns exemplos que citei anteriormente, como o aumento de escolas e creches e a valorização dos profissionais da nossa região.
Como surgiu a ideia de fazer o primeiro espaço de coworking na região do Campo Limpo? Como essa iniciativa pode promover e estimular a produção artística e econômica na região?
Aqui nosso terreiro, nosso quilombo, nossa aldeia é coworking! Acreditamos que o poder da colaboração está na periferia, e não na Berrini, no Uber. A economia da colaboração é quando você ajuda a bater uma laje. Foi mais uma forma de a gente disputar narrativa, de lembrar que as coisas também acontecem na periferia, de falar de tecnologia. É a nossa cara, pois temos de ser criativos e empreendedores para sobreviver na cidade mais desigual do mundo.
A casa fica aberta 24 horas, e temos: gráfica, armazém de comida orgânica, salas de reuniões e escritórios, auditório para até 50 pessoas e um quintal, onde realizamos exposições, lançamento de livros, samba, feijoada. Aqui também oferecemos palestras, oficinas, assistência contábil, jurídica, tudo o que é necessário para a empresa gerar trabalho e renda. Recebemos empreendedores que querem usar os serviços da casa a fim de se organizarem para disputar de forma mais igual o grande mercado concorrido.
Quais são os principais desafios para os gestores culturais na implantação de políticas públicas efetivas em regiões periféricas?
Acredito que o apoio do Estado seja um direito de todos, mas, infelizmente, hoje o maior desafio que enfrentamos é o racismo institucional por parte desse Estado, pois parece que rola uma desconfiança – eu percebo isso quando eles escolhem as grandes ONGs para concentrar os recursos, em vez de passar a grana direto para quem está fazendo o trabalho de verdade.
Outro problema é a falta de acessibilidade para fazermos a prestação de contas quando conseguimos algum recurso. Conheço organizações que foram processadas por não prestarem conta direito, e isso, no meu ponto de vista, é uma incoerência, pois precisamos de ferramentas e suportes para fazer bem essa prestação de contas e não gerar um novo problema. Acredito que seja necessário unir gestores do Brasil e do mundo, trocar experiências, compartilhar modelos de gestão para conseguirmos criar ou potencializar novas formas de práticas de gestão que sejam sustentáveis.
No final de outubro deste ano, participei do Laboratório de Estruturas Flexíveis, realizado na Casa do Povo e que reuniu desde gestores até pessoas de aldeias Guarani, de coletivos da Itália, de Israel, Porto Rico, da França, da periferia do Rio de Janeiro. Durante uma semana compartilhamos experiências de gestão, de como manter os espaços sustentáveis. Foi muito bom, porque trocamos ideias e estamos fortalecendo uma rede de solidariedade na qual um se apoia no outro. Acredito que esse é um caminho bem interessante para termos em nosso horizonte!