por André Bernardo
No começo dos anos 1990, o jornalista José Castello foi convidado pelo editor Luiz Schwarcz a escrever uma biografia sobre Vinicius de Moraes (1913-1980). A família do poeta tinha acabado de assinar com a Companhia das Letras e incluiu no contrato de relançamento de sua obra a publicação de uma biografia. A primeira reação do jornalista foi dizer não. Escrever biografias era algo que não estava nos seus planos. Na dúvida, pediu três dias para pensar. Quando lembrou que, no ginásio do Colégio Santo Inácio, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, um de seus livros favoritos era Antologia poética (1954) e, logo depois, quando reencontrou aquele mesmo exemplar, “velhíssimo”, na biblioteca de casa, Castello resolveu aceitar. “Vinicius, Cabral e Bandeira eram os autores que eu mais lia quando menino”, recorda. “Antologia poética era um dos livros que eu não largava. Lia sem parar. E lia apaixonadamente.”
Quando colocou o ponto-final em Vinicius de Moraes – o poeta da paixão (1994), o jornalista voltou a ser procurado por Schwarcz. A família, explicou o editor, queria ler o original antes da publicação. Seria possível? A leitura da família, raciocinou o biógrafo, seria útil para corrigir datas e nomes. Não fez objeção. Uma semana depois, foi novamente procurado. Desta vez, por Suzana de Moraes (1940-2015), a primogênita de Vinicius. “Você transformou meu pai num santo”, disse. “Só pegou o lado bom dele.” Passado algum tempo, com o livro já publicado, Castello recebeu um telefonema. Do outro lado da linha estava Lygia, a irmã mais velha do poeta. “Vamos processá-lo!”, avisou. “A imagem que você traçou do meu irmão é a de um devasso.” “Dona Lygia”, respondeu Castello, “a família precisa chegar a um acordo: afinal, eu santifiquei ou satanizei o Vinicius?”, perguntou o biógrafo.
Vinicius de Moraes – o poeta da paixão foi a primeira e última biografia escrita por José Castello. E não foi por falta de convite. Em certa ocasião, ele chegou a ser sondado para escrever a biografia de Jorge Amado (1912-2001). Discutiu-se patrocínio, mas o projeto não avançou. “Escrever biografia no modelo clássico, ou seja, do nascimento ao último suspiro, é simplesmente enlouquecedor!”, define. “Quando biografei o Vinicius, deixei de fazer várias viagens por falta de dinheiro. Numa época em que ainda não havia internet, tive que entrevistar pessoas que moravam em Los Angeles, Paris e Roma por carta”, relata. Em vez de biografias, Castello tem preferido escrever ensaios biográficos: individuais, como João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma (1996) e Na cobertura de Rubem Braga (1996); ou coletivos, como Inventário das sombras (1999), que será relançado pela Record.
Em busca de um nome
A biografia de Vinicius nasceu de uma encomenda. Na maioria dos casos, porém, a ideia parte do próprio biógrafo. “Às vezes, escolho. Caso da Elis, a primeira de todas. Noutras vezes, sou escolhida. Caso do Cazuza. Quem me escolheu foi a Lucinha Araújo”, explica a jornalista Regina Echeverria, autora de Furacão Elis (1985), Cazuza – só as mães são felizes (1997), Gonzaguinha & Gonzagão – uma história brasileira (2006) e Raimundo Fagner – quem me levará sou eu (2019), entre outras.
Há quase um consenso entre os biógrafos de que um dos principais critérios de seleção é a admiração que se sente pelo biografado. Autor de O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues (1992), Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha (1995) e Carmen: uma biografia (2005), Ruy Castro admite que, para biografar alguém, é preciso admirar sua obra e ter curiosidade sobre sua vida. “Imagine dedicar tanto tempo de sua vida a alguém que você detesta ou a quem seja indiferente”, provoca o jornalista e escritor. “Aliás, a graça está justamente nisto: procurar defeitos nas pessoas de quem eu gosto. Se eu fosse biografar alguém que detestasse, teria de tentar achar as qualidades dele…”
Indagado sobre se aceitaria biografar a vida de quem não gosta ou admira, o jornalista, escritor e compositor Nelson Motta é taxativo: “Nem pelo meu peso em ouro”. Para o autor de Vale tudo – o som e a fúria de Tim Maia (2007) e A primavera do dragão – a juventude de Glauber Rocha (2011): “Meu principal impulso é o amor, a amizade e a admiração. Tim e Glauber foram dois dos meus amigos mais próximos e queridos. Aí, nem é um trabalho; é um prazer”. Como em toda regra, porém, há exceções, e o jornalista Tom Cardoso parece ser uma delas. “Não tenho esse problema, não”, garante o autor de Se não fosse o Cabral: a máfia que destruiu o Rio e assalta o país (2018), sobre o ex-governador do Rio Sérgio Cabral. “Uma figura que está longe de merecer a admiração de qualquer pessoa normal”, define. E, se deixassem, ele teria escrito também a biografia do bispo evangélico Edir Macedo, o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. “Uma figura abominável”, resume.
Cardoso não está sozinho nessa. Depois de mandar Olga (1985) para o prelo, o jornalista Fernando Morais, de Chatô – o rei do Brasil (1994), O mago – a incrível história de Paulo Coelho (2008) e Lula – volume 1 (2021), entre outras, pensou em escrever a história de Sérgio Fleury (1933-1979), o delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo acusado de torturar e matar presos políticos durante a ditadura militar. Desistiu quando soube que o jornalista Percival de Souza já tinha iniciado projeto semelhante. Outro personagem que entusiasma Morais, “embora estejamos em margens opostas do mesmo rio”, é o ex-governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães (1927-2007). “Quando meus amigos de esquerda estranham o fato de eu pensar em escrever sobre o senador baiano, repito a mesma resposta: ‘Jornalista que não se interessa por ACM tem que mudar de profissão’.”
E quando o biógrafo não consegue disfarçar a admiração que sente pelo biografado, dá para manter a isenção na hora de escrever? O autor não corre o risco de publicar uma biografia “chapa-branca”? Com a palavra, Nelson Motta: “Amo meus biografados primeiramente como pessoas físicas, e aceito todas as suas eventuais falhas e vacilos. O Tim e o Glauber fizeram grandes besteiras, mas besteiras geniais e hilariantes, e não revoltantes ou depreciantes. Os erros dão sabor à vida e ensinam para o futuro”, filosofa. Sobre esse tema, Morais indaga: como não se comover com uma tragédia humana com a de Olga Benário Prestes (1908-1942) ou, ainda, como garantir que seu olhar seja absolutamente isento diante de um monstro como Sérgio Fleury, independentemente de compartilhar ou não das convicções de um e de outro? O que ele recomenda a si mesmo é: “Esqueça o amor e o ódio. Tente exumar o defunto como ele era, e não como você gostaria que ele fosse”. “Dá para ser isento, sim. Às vezes, dói, mas dá”, arremata.
Garimpeiros de passados
Toda e qualquer biografia começa pela fase da apuração. Nela, o biógrafo consulta arquivos, pesquisa fontes e coleta depoimentos, entre outros trabalhos de Hércules. Para escrever Mauá – empresário do Império (1995), o jornalista e escritor Jorge Caldeira pesquisou por sete anos, de 1987 a 1994. No caso de Ronaldo: glória e drama no futebol globalizado (2002), dez dias foram mais do que suficientes. Mas ele revela que há exceções: há 15 anos, pesquisa a vida e a obra do engenheiro José Pires do Rio (1880-1950); e, há 30, a trajetória do político José Bonifácio (1763-1838). “De longe, a fase mais trabalhosa é a pesquisa”, garante Caldeira. “Só considero a pesquisa concluída quando tenho um plano de livro montado e material para escrever tudo que está no plano. A partir daí, cessa a pesquisa e começa a redação.”
O jornalista Fernando Morais se considera “obsessivo” e “detalhista” na hora de apurar. Para fazer Chatô – o rei do Brasil, calcula ter realizado mais de 200 entrevistas. “Algumas delas com a mesma pessoa, durante dois, três dias seguidos”, observa. E, quando o assunto é perfeccionismo, Ruy Castro não fica atrás. “Primeiramente, você tem de aprender o que todo mundo sabe sobre o personagem. Depois, partir para descobrir o que ninguém sabe”, teoriza. Em sua opinião, a fase da apuração é a mais emocionante e, se for bem feita, a da escrita se torna um prazer. Além disso, em quase todas as biografias, há um momento em que se descobre algo totalmente inesperado. Algo que se revela fundamental. No caso de Carmen Miranda (1909-1955), foi a descoberta de que ela morou por dez anos, de 1915 a 1925, no bairro da Lapa, no centro do Rio. “Durante o dia, era um bairro careta e religioso. À noite, o centro da boemia no Brasil. Carmem foi, digamos assim, o resultado dessas duas misturas”, observa Castro.
Para o jornalista e pesquisador João Máximo, responsável por Noel Rosa: uma biografia (1990), em parceria com Carlos Didier; João Saldanha: sobre nuvens de fantasia (1996) e Paulinho da Viola: sambista e chorão (2002), a parte mais difícil não é uma só. Ele lista cinco: a péssima memória do brasileiro; a precária qualidade dos arquivos; a resistência de valiosos entrevistáveis; o egoísmo dos colecionadores (“raros têm a generosidade de um Jairo Severiano”, diz); e a vaidade de alguns biografáveis. Não bastasse, o jornalista e doutor em literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcelo Bortoloti, que tem no currículo Viver é melhor que sonhar – os últimos caminhos de Belchior (2021), em parceria com Chris Fuscaldo, e Guignard: anjo mutilado (2021), aponta outra dificuldade: a remuneração. “O que se ganha, hoje, não é suficiente para sobreviver enquanto faz uma biografia”, confessa. “No Brasil, deve existir uma meia dúzia de autores que conseguem viver só de escrever biografias.” Até o fim do ano, Bortoloti lançará a biografia do pintor Di Cavalcanti (1897-1976).
Dor ou delícia?
Finda a apuração, começa a escrita propriamente dita. É a fase preferida de Nelson Motta, quando ele fica “bordando o texto”. “O melhor momento é quando dou gargalhadas com alguma coisa que acabei de escrever. Aconteceu várias vezes com o Tim e o Glauber jovens, que eram muito engraçados e doidões”, diz. O jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo, autor de Roberto Carlos em detalhes (2006), pensa diferente. Se, para Motta, a fase da apuração é a mais chata e a da redação é a mais divertida, para Araújo, é o contrário. “Há muita dor e tensão”, descreve. Escrever também é doloroso para Fernando Morais: “Sou ágil na pesquisa, mas morro de inveja da rapidez com que o amigo Lira Neto, por exemplo, consegue desenvolver o texto de um livro. Para mim, é um processo lento”, reconhece, citando o autor de Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (2009), Getúlio 1, 2 e 3 (2012-2014) e Maysa – só numa multidão de amores (2017), entre outras.
Os apuros não terminam com a publicação do livro. Melhor dizendo: terminam uns, começam outros. “Já sofri processos, paguei indenizações a personagens que se sentiram ofendidas e cheguei a ter um desaguisado com o ex-presidente Ernesto Geisel (1907-1996). Neste caso, eu tinha razão, não ele”, observa Fernando Morais. “Mas só não erra nem derrapa quem não escreve, por maior que seja o cuidado com a apuração.”
Nelson Motta lembra da vez em que trocou o apelido de uma das fontes do livro A primavera do dragão, um professor de Salvador, pelo de um homônimo. “O homenzinho virou bicho, chamou de livreco, disse que era tudo mentira”, recorda. “O livro é mesmo cheio de mentiras, não do autor, mas de Glauber, que era famoso por não respeitar as fronteiras entre realidade e fantasia.” João Máximo também passou por poucas e boas. “Eu e Didier dedicamos oito anos de trabalho à biografia do Noel Rosa. Demos sorte de poder entrevistar parentes, amigos, vizinhos, parceiros e até desafetos contemporâneos de Noel. Daí o volume de informações contidas em mais de 500 páginas”, conta. “Depois, entraram em cena os herdeiros. Eles nos processaram em duas ocasiões: uma no Rio, outra em Brasília. Perderam em ambas.”
O caso mais famoso, porém, é o de Paulo Cesar de Araújo, processado pelo cantor Roberto Carlos. Dezesseis anos depois da publicação da biografia, Araújo explica que, se pudesse voltar no tempo, faria uma única coisa diferente: “Jamais entraria naquela audiência no Fórum Criminal da Barra Funda, à qual Roberto Carlos compareceu, em 2007, sem estar acompanhado do meu próprio advogado”. “Aquele esdrúxulo acordo judicial comandado pelo juiz-cantor só ocorreu porque eu estava lá sozinho”, avalia. Desde então, Araújo lançou mais dois livros: O réu e o rei – minha história com Roberto Carlos, em detalhes (2014) e Roberto Carlos outra vez: 1941-1970 – volume 1 (2021). No momento, está trabalhando no segundo volume, que vai cobrir o período de 1971 a 2021. Depois, pretende investir em biografias coletivas sobre MPB, cinema e futebol, nessa ordem. “Uma biografia tradicional, que enfoca um único personagem, por enquanto, não está nos meus planos”, diz.
“Cala a boca já morreu!”
Em 2015, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram, por unanimidade, liberar a publicação de biografias sem autorização prévia dos biografados ou dos seus herdeiros. À época, Tom Cardoso, biógrafo do jornalista Tarso de Castro (1941-1991), do jogador Sócrates (1954-2011) e da cantora Nara Leão (1942-1989), tentou apurar a biografia de Gilberto Gil. Não conseguiu. “As pessoas tinham receio de falar sem a autorização dele”, explica. Acabou desistindo. Em agosto, lançará uma biografia sobre Caetano Veloso. “Não fiz ‘beija-mão’ com ninguém: nem com o Caetano, nem com a Paula [Lavigne, parceira do cantor]. Você perde, por um lado, por não ter acesso ao acervo da família; mas ganha, por outro, por ter independência na hora de escrever”, analisa. Quando escreveu Ninguém pode com Nara Leão: uma biografia (2021), Isabel Guedes, filha da cantora com o cineasta Cacá Diegues, contou o que sabia e ainda abriu seus arquivos. “Ajudou muito e, em nenhum momento, pediu para ler o livro. É o melhor dos mundos”, festejou Cardoso.
A vida de um biógrafo é feita de dores e delícias. “Perrengues? Durante o trabalho, nenhum, nunca. Depois do livro pronto, sim: as perseguições, os processos, as aporrinhações dos herdeiros…”, cita Ruy Castro. Mas há um lado bom também. Algumas biografias ganham prêmios literários – caso de Carmen, que levou o Jabuti de Melhor Biografia em 2006 –, outras ganham versões cinematográficas. A biografia Mauá – empresário do Império chegou às telonas como Mauá – o imperador e o rei (1999), de Sérgio Rezende; e Vale tudo – o som e a fúria de Tim Maia, como Tim Maia (2014), de Mauro Lima. “É difícil prever o sucesso comercial de uma biografia”, avalia o jornalista e escritor Sergio Vilas Boas, autor de Biografias & biógrafos – jornalismo sobre personagens (2002). “O importante é que, nas mãos de um autor-pesquisador hábil e transparente, qualquer personagem (vivo ou morto, famoso ou não) tem mais chances de ser retratado com qualidade. Em biografia, qualidade é sinônimo de ética, metodologia de pesquisa e escrita envolvente.”
Em 2021, o gênero biografia ocupou o 12º lugar no ranking dos mais vendidos no Brasil, com um total de 2,8 milhões de exemplares. A título de curiosidade, os três primeiros colocados são os didáticos, os religiosos e os de literatura infantil. Juntos, esses três gêneros respondem por 76,6% do mercado editorial e venderam 299,3 milhões exemplares. Os números são da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). Alguns biógrafos, como Ruy Castro, José Castello e Lira Neto, dão cursos esporádicos sobre o ofício. “A maior virtude de um biógrafo, creio, é a de nunca desistir de uma informação. Se o biógrafo decidiu buscá-la, não pode desistir enquanto não chegar a ela”, ensina Castro. Em compensação, o pior pecado é, na falta dessa informação, inventar algo e tentar passar como verdadeiro. “Bolas, se o sujeito acha que é permitido inventar, por que não vai escrever romances?”, diverte-se.