por Duanne Ribeiro

Faça este exercício: observe o mapa da sua cidade e procure pelas marcas da imigração, antigas e recentes. No caso de São Paulo, essa presença histórica desponta onipresente:

Brás, Mooca, Belenzinho, Bixiga não seriam o que são sem a vinda dos italianos; o Morro dos Ingleses tem seu nome por causa dos anglo-saxões que se instalaram lá; a Armênia, notavelmente refúgio dos sobreviventes do genocídio em seu país (1915-1923); o Bom Retiro, onde se concentrou a comunidade judaica (hoje, mais em Higienópolis). Até uma rua tão emblemática do município – a 25 de Março – entra nesse cômputo: foi fundada por árabes. São Paulo ganhou sua personalidade por meio desses e de outros fluxos.

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Como isso se dá no lugar onde você mora? Essa é uma lógica que se aplica a todo o país: se o Brasil cantasse sobre si, poderia compor sua canção reelaborando os versos iniciais de “Paratodos”: o meu pai era espanhol; meu avô, italiano; o meu bisavô, japonês; meu tataravô, alemão... Isso citando apenas os grupos imigrantes de maior envergadura que vieram ao país – sabemos que essa filiação poderia ser muito mais numerosa e inclui tudo o que é africano e indígena em nós. Tudo o que enriqueceu a palavra brasileiro.

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Esses movimentos continuam hoje, claro. Com crescimento expressivo, os bolivianos se tornaram, em 2010, a segunda maior colônia de estrangeiros em São Paulo (apenas os portugueses são em maior número), com grande presença no Centro e nas zonas Norte e Leste. Por sua vez, Guaianazes, distrito no extremo leste do município, tornou-se a casa de imigrantes africanos e haitianos. Se aprendemos algo com a nossa história, teremos a certeza de que, ainda outra vez, as ruas, os costumes, as comidas, os saberes – tudo o que chamamos e chamaremos de identidade brasileira – serão diversificados, alargados, transformados. Se aprendemos algo com a nossa história, saberemos o quanto isso tudo representa, também, em termos de discussão política e de problemática social.

Todo esse contexto foi tema da edição de abril do Brechas Urbanas. Mês a mês, o ciclo de debates aborda temáticas extraídas do cotidiano das cidades. Inspirados na Ocupação Gregori Warchavchik – exposição que até 23 de junho fala da obra do arquiteto pioneiro do modernismo brasileiro –, propusemos conversar sobre o tema da imigração.

A ideia dessa mesa surgiu na aula que a professora Anat Falbel nos ministrou quando ainda nos preparávamos para construir a Ocupação. Anat enfatizou o quanto a condição de imigrante marcou não só a formação e a visão criativa de Warchavchik, mas também a maneira como a sua obra foi recebida. Ressaltou ainda o que havia de excepcional em um “olhar estrangeiro”, que não estava aferrado aos mesmos ditames nacionalistas que podiam guiar outras tendências da arte brasileira (leia mais sobre a perspectiva dela na publicação da exposição). Acima de tudo, levou-nos a pensar no quanto essa trajetória do arquiteto se incluía em um contexto mais amplo, cuja discussão é crucial hoje.

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Nascido na Ucrânia em 1896, Warchavchik era de origem judaica; fugindo dos pogroms – ataques antissemitas massivos –, foi à Itália, onde se formou em arquitetura, e depois veio ao Brasil. Aqui, casou-se com a cantora lírica Mina Klabin, ela também de família imigrante (a Chácara Klabin é outro bairro paulistano batizado pelos deslocamentos...). Nascida na Colômbia em 1990, Daniela Solano veio com a família para o Brasil fugida de ameaças de grupos paramilitares. Os pais de Daniela trabalhavam em apoio aos indígenas Paeces, povo presente no departamento de Cauca, o que atraiu a perseguição. Daniela tornou-se uma das criadoras do Visto Permanente, que mapeia a produção artística imigrante.

Nesse salto de cem anos, pode impressionar como alguns aspectos são semelhantes. O deslocamento, a complexidade da situação que impulsiona a partida. Outros elementos podem ser análogos: as condições de acolhimento, as relações com o território deixado para trás. Com a presença de Daniela, além da pesquisadora Adriana Capuano, o Brechas de maio passou por essas e outras facetas da situação do imigrante. Se antes o projeto discutira os refugiados, a cidade de quem parte, agora falamos da cidade de quem fica.

A conversa entre as convidadas, a mediadora Monique Evelle e o público deixou claro o quanto, por outro lado, é variada essa experiência. Diferenças de país de origem, graus de proximidade das culturas, o preconceito implicado pelo tom da pele – tudo matiza o modo como o imigrante será integrado, as resistências que sofrerá. Como noutros casos, entender essas pessoas e seus lugares nos demanda a grande tarefa da escuta.

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Projetos como o Visto Permanente são meios de se aproximar dessas narrativas. O canal de YouTube deles traz numerosos trabalhos artísticos e entrevistas. Alguns projetos com apoio do Rumos Itaú Cultural também são boas fontes: Refúgio, da Cia. Marginal, propôs levar ao teatro a “Pequena Angola”, maior comunidade de angolanos do Rio de Janeiro, na Maré; já Pasajeras, de Francielle Rebelatto, documentou o dia a dia de mulheres que transitam nas fronteiras entre Argentina, Paraná e Paraguai. Temos de ouvir essas vozes.

Igualmente, temos de ouvir negros e indígenas, cuja história é também determinada por tudo de que estivemos tratando. Considere o quanto ideologias de supremacia racial se fizeram impor na construção das políticas de imigração do Estado brasileiro ao longo dos séculos XIX e XX. Um panorama desses fatos é dado pela historiadora Giralda Seyferth (1943-2017) em “Colonização, imigração e a questão racial no Brasil”. Ela mostra como essas políticas se erguiam sobre uma hierarquia entre raças, fundada na “superioridade europeia” que abrangia mesmo distintos status entre povos europeus. Nesse contexto, afrodescendentes, as centenas de povos originários, os mestiços eram estruturalmente excluídos ou afastados do desenvolvimento. As cidades são como são por isso, também.

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A sua história é uma história de imigrantes? Sua família partiu de longe, veio e fez a cidade? Envie-a para a gente; podemos contá-la na próxima coluna do Brechas.

 

Duanne Ribeiro integra a equipe de Comunicação do Itaú Cultural e compõe a curadoria do ciclo de debates Brechas Urbanas.

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