por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

Engana-se quem acredita que as plataformas digitais e os serviços de streaming têm impactado apenas a etapa de distribuição da portentosa indústria cinematográfica. O momento atual e histórico de transformação das mídias tradicionais vem exigindo novas formas de pensar cinema e de se relacionar com ele. “Conteúdo e sociedade não são descolados. O que é tendência na sociedade se reflete no audiovisual. Isso vai indo como uma onda”, afirma Carolina Alckmin, produtora-executiva da O2 Filmes.

Hoje são muitos os atores envolvidos na criação de produções on demand. Uma série em uma plataforma digital é um produto que resulta de diversos mundos pensantes: das propostas do criador às ideias da produtora, com pitacos da própria plataforma. Um processo detalhado que envolve curadoria, maturação, comunicação, desenvolvimento e, claro, venda.

Na visão de Carolina, ideias podem levar a um longa ou a uma série; ao cinema ou ao YouTube – tudo depende do que se quer com determinada produção. “Precisamos ter bons ouvidos para o que o canal, o player e as plataformas solicitam. A gente tem de respeitar esse contato com o público, que, muitas vezes, ainda é uma incógnita. Estamos tentando entender tudo isso”, explica.

Para a cineasta Juliana Vicente, fundadora da Preta Portê Filmes, produtora com “foco em cinema de inclinação social e de relevância artística”, o on demand e as plataformas de compartilhamento de vídeos têm furado um invólucro restritivo e aberto espaço no mercado para iniciativas de produtores negros.

“Na cultura negra, convivemos com o invisível desde sempre. A gente ficou muito tempo sem produzir imagem e sem ter essa possibilidade. A grande inovação é que agora estamos produzindo. Uma plataforma livre como o YouTube permite que muitas pessoas nasçam, abre espaço para novas narrativas e novas formas de criar imagem”, diz.

Diretora da série Afronta!, uma coprodução com o Canal Futura, Juliana cita o filme Guava Island, estrelado por Rihanna e Donald ​Glover, como exemplo recente da atenção dada pelas novas plataformas às demandas de público: o longa pôde ser visto gratuitamente na Amazon Prime Video até a noite do dia 13 de abril – e agora se encontra disponível apenas para os assinantes desse serviço de streaming.


Crise das telas?

Em 1982, durante o Festival de Cannes, o diretor Wim Wenders reuniu quatro renomados cineastas em um quarto de hotel e perguntou a cada um deles, individualmente, o que pensava do futuro do cinema. “Parecia que existia um contexto de prenúncio de catástrofe”, conta o artista multimídia Lucas Bambozzi. Se as tecnologias digitais pareceram chacoalhar o universo das telonas, uma renovação da linguagem tem emergido no hibridismo com os meios videográficos.

Pesquisador em novas mídias, Lucas diz que sempre se importou muito pouco com o espectador. “Eu nunca fiz o cinema tradicional. Sempre tive desejo de fazer algo que não fosse o cinema em si. Desde sua invenção, existiram muitos tipos de cinema. Um deles se cristalizou. O [pesquisador] Arlindo Machado já falou de um cinema instalativo, que presume outras formas de exibição. O cinema se cristalizou num espaço único, mas poderia ocupar outros espaços”, analisa.

Ainda que em 2018, segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o número de salas de cinema no Brasil tenha batido um recorde, com 3.356 espaços, a maior parte do país carece de locais de exibição e de acesso ao grande circuito de filmes. A opção por canais e plataformas temáticos tem se mostrado acertada até para quem ainda finca os dois pés numa indústria tradicional e disseminada nas grandes cidades: a das TVs por assinatura. O canal Arte 1 lançou no último ano o Arte 1 Play, aplicativo que promete dar acesso ao “maior e mais relevante acervo digital de arte do país” por 7,99 reais ao mês.

“As produtoras que se especializarem no genérico têm um grande desafio. Ninguém mais quer ser todo mundo”, afirma Caio Carvalho, diretor-executivo do canal. “Quando vemos, caímos no passado sem saber que estamos no passado. E é uma indústria que não pode cair também em retrocessos de políticas públicas.” Segundo ele, 60% dos espectadores do Arte 1 chegam por meio da televisão por assinatura.

Embora as novas plataformas simbolizem desafios ainda nebulosos para a indústria cinematográfica, o momento atual tem sido visto por especialistas como um cenário rico para o mercado brasileiro de audiovisual. De acordo com Carolina, só a O2 faz de quatro a cinco séries por ano. “A gente fazia uma série a cada ano. Agora fazemos de quatro a cinco. Antes o sucesso de uma série era mensurado apenas pelo linear. E isso diria se ela seria renovada ou não”, conta. “Tivemos uma série [Rua Augusta, de Pedro Morelli] que no linear, por exemplo, não foi muito bem e no Now [plataforma de conteúdo de um serviço de assinatura] foi um sucesso.”

Para Adhemar de Oliveira, diretor do Espaço Itaú de Cinema, o digital possibilita o alargamento do analógico. “Como sala de cinema, eu estou na ponta de uma cadeia que historicamente no Brasil sempre foi complicada, pois nunca teve uma capilaridade para o tamanho do país. O digital possibilita alargar o analógico e o físico. Nesse aspecto, ele é uma explosão”, diz. “Filosoficamente, acho que estamos vivendo a criação de uma nova coisa, que não vou apontar se é para o bem ou para o mal. Mas tecnologicamente ela é incrível. Os cineclubes do futuro são as plataformas.”
 

*Texto produzido durante a terceira edição do evento Encontros de Cinema, que reuniu no Rio de Janeiro, nos dias 15 e 16 de abril, diretores, pesquisadores, roteiristas, produtores, jornalistas e gestores desse setor.

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