Da Pintura Corporal ao Vídeo: formas indígenas de lidar com a memória
12/12/2017 - 15:30
Por Ilana Seltzer Goldstein
“A imaginação é a memória fermentada. Quando se perde a memória, perde-se a faculdade de imaginar”, disse António Lobo Antunes em entrevista. Não foi por acaso que o escritor português escolheu as palavras “imaginação” e “imaginar”. Imagens são fundamentais na fabricação da memória: cenários, rostos e objetos povoam nossas lembranças. E, de fato, ressignificar experiências já vividas permite nos situar no presente e nos projetar no futuro.
Proponho, aqui, pensar sobre memória e transmissão de saberes a partir do caso dos povos indígenas. Não se pode ignorar o avanço das fronteiras agrícolas e hidrelétricas na Amazônia, o risco atual de retrocesso na demarcação de terras nem o assassinato recorrente de indígenas. Paradoxalmente – ou talvez por isso mesmo –, cada vez mais surgem projetos voltados para o registro da memória e a valorização de expressões culturais indígenas.
Baseio-me no historiador alemão Jan Assmann, para quem a memória[1] é um estoque de textos, imagens, símbolos e ritos que possibilitam a construção da identidade. Um saber coletivo sobre o qual cada grupo assenta sua consciência de unidade. Um repertório que se refaz de geração em geração; portanto, nunca é exatamente o mesmo, mas tampouco se altera por completo.
A oralidade e a “fabricação” do corpo: formas tradicionais de transmissão de conhecimento
Num livro publicado pelo xamã Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, Kopenawa contrasta o uso que os Ianomâmi fazem da palavra com o uso feito pelos brancos:
Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir de nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 75).
Na poética explicação do xamã, “peles de imagens” são textos impressos, como livros e jornais; “desenhar” palavras significa escrever. Os Ianomâmi não precisam disso porque seu saber está interiorizado, é reativado em cada atividade cotidiana, difundido de maneiras que prescindem da escrita – e, mesmo assim, são bastante sofisticadas.
O povo Cuicuro, de Mato Grosso, oferece um exemplo desse refinamento nas artes verbais. Segundo a linguista Bruna Franchetto, há uma fala feminina e familiar, usada nas casas, e outra ritualizada e masculina, praticada no espaço público, o centro da aldeia. Pelo fato de ter ritmo, versos e repetições, a “fala cantada” aproxima-se da música. Ela celebra a identidade coletiva e traz status ao orador; quando se transforma inteiramente em canto, permite comunicação com o universo dos espíritos. Já as rezas, fórmulas verbais memorizadas por especialistas, podem curar, fazer adoecer ou mesmo matar. De acordo com Bruna, a narrativa oral dos Cuicuro é seu principal mecanismo de transmissão de conhecimentos, seja nos relatos de eventos testemunhados pelo narrador, nas histórias baseadas na cosmologia ou nas "histórias feias", com temas obscenos. Contudo, Bruna teme que a introdução do português pelas escolas e pelos missionários leve ao desaparecimento das artes verbais entre os ameríndios.
O corpo é outro veículo tradicional de ensino e aprendizagem. Entre numerosos povos indígenas, os ritos iniciatórios são centrados nos corpos dos iniciados. O antropólogo Pierre Clastres conta que os jovens Guaiaqui (hoje conhecidos como Aché) são feridos com pedras, facas e ossos, mas aguentam em silêncio. Assim, provam sua valentia, como futuros caçadores, e igualam-se aos outros homens, que possuem as mesmas cicatrizes. A sociedade, com suas normas e seus princípios, é literalmente inscrita na pele dos iniciados.
Muitas vezes o xamã depende de substâncias e processos corporais – como alucinógenos e doenças – para poder agir. Pedro Cesarino, que pesquisou os Marubo da Amazônia, explica que, no processo de aprendizagem xamânica, beber ayahuasca, consumir rapé, fazer dieta, tomar picadas de insetos e ornamentar o corpo aumenta as chances de o aprendiz se relacionar com seus “duplos” e com o cosmos.
Novas formas de lidar com a memória e a transmissão de conhecimentos
Nas tensas e complexas situações de contato com a sociedade nacional, alguns povos têm se apropriado de modalidades de registro de conhecimento dos brancos. Produzir filmes, por exemplo, revelou-se um caminho interessante. Wapté Mnhõnõ, Iniciação do Jovem Xavante foi dirigido por Divino Tserewahú, um Xavante que participou de oficinas da ONG Vídeo nas Aldeias. Mostra processos como a corrida de toras – competição em que se carregam troncos de árvores – e a perfuração das orelhas dos jovens. A narrativa é pontuada por explicações a respeito da cerimônia de iniciação. Outro dos muitos vídeos produzidos com o apoio da Vídeo nas Aldeias é Bicicletas de Nhanderu (2011), com direção de Patrícia Ferreira Keretxu e Ariel Duarte Ortega, que mergulham no cotidiano dos Mbya-Guarani do Rio Grande do Sul.
A patrimonialização estatal é outra estratégia. Em 2001, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), instituiu a identificação e a salvaguarda de bens culturais de natureza processual e dinâmica. O primeiro patrimônio imaterial registrado foi a arte gráfica kusiwa, dos índios Wajãpi, em 2002. A antropóloga Dominique Gallois, que participou do processo, nota, a esse respeito, duas tendências opostas: os Wajãpi mais jovens querem continuar divulgando imagens e objetos de seu povo, como forma de conquistar visibilidade, enquanto os mais velhos prefeririam ter mais controle sobre quem usará seus bens culturais e como.
Outros bens indígenas registrados no Iphan são a Cachoeira de Iauaretê, local sagrado para os Tucano, Desana, Piratapuia, Uanano e Tuiuca – que consideram a corredeira um ponto de parada da cobra-canoa que trouxe seus ancestrais –, e o “modo de fazer” bonecas do povo Carajá. A Federação do Povo Huni Kuĩ do Acre procurou o Iphan pedindo a patrimonialização de seus desenhos kene, mas até agora o registro não se concretizou, em razão das controvérsias entre os próprios membros desse povo acerca dos ganhos efetivos de uma salvaguarda estatal. Afinal, a mera patrimonialização não evita que surjam reproduções não autorizadas dos desenhos, pois a legislação de propriedade intelectual se pauta na autoria individual, e não no patrimônio coletivo.
Quanto aos museus indígenas, o Maguta, dos Ticuna, é provavelmente o mais antigo. Criado em 1990, no Amazonas, reúne máscaras, colares, cestos, redes, fotos históricas, mapas de áreas indígenas e desenhos de mitos. Por fortalecer a identidade ticuna, o museu incomodou madeireiros, políticos e latifundiários, que lhe fizeram ameaças já no dia da inauguração. O Maguta sedia formações para professores indígenas e abriga a única biblioteca da região. O Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque, por sua vez, foi concebido pelos povos Caripuna, Palicur, Galibi-Marworno e Galibi-Kalinã, com assessoria da antropóloga Lux Vidal, para funcionar como centro de memória, pesquisa e documentação. Desde 2004, pretende não apenas preservar o patrimônio material e imaterial, como também incentivar novas formas de expressão. Iniciativas de colaboração com museus estaduais e federais também têm sido experimentadas.
Empreitadas editoriais também vêm florescendo. No romance O Karaíba. Uma História do Pré-Brasil (2010), Daniel Munduruku – autor de mais de 50 títulos – relata como viviam os povos indígenas antes da invasão portuguesa. No campo da não ficção, Una Isi Kayawa – Livro da Cura, selecionado pelo edital Rumos, registrou espécies vegetais com suas respectivas aplicações medicinais pelo povo Huni Kuĩ. O livro é bilíngue e foi transcrito a partir de explicações orais. A obra foi impressa em papel com plástico PET, que resiste à umidade da floresta.
Essas e outras iniciativas[2] precisariam ser mais bem mapeadas, em níveis regional e nacional, e levadas em conta pelos gestores culturais e propositores de políticas públicas. Apoiar projetos e programas criativos, políticos e econômicos dos povos indígenas que vivem no Brasil, respeitando suas escolhas e seu protagonismo, é um desafio atual e candente.
Ilana Seltzer Goldstein é professora doutora, docente do curso de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde ministra as disciplinas “Antropologia e Arte” e “História da Arte Ameríndia”. É co-coordenadora da Cátedra Kaapora, da Pro-Reitoria de Extensão e Cultura da Unifesp, voltada à promoção da diversidade cultural e à simetrização de saberes acadêmicos e não-acadêmicos. Participou de diversos projetos e ações socioculturais junto a instituições como Serviço Social do Comércio (SESC), Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), Ministério da Cultura (MinC), Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, Itaú Cultural e Base 7 Projetos Culturais, entre outras.
[1] Há outros autores importantes na discussão da memória social, mas, por questão de foco e espaço, não será possível abordá-los aqui. Recomendo, por exemplo, Maurice Halbwachs e Eric Hobsbawm.
[2] Para conhecer mais iniciativas no campo da educação, da cultura e da museologia voltadas para o registro e a transmissão de saberes e formas expressivas indígenas em situações de contato com a sociedade nacional, recomendo a leitura de COELHO DE SOUZA; COFFACI DE LIMA (2010); CUNHA; CESARINO (2014); MACEDO (2011); e BESSA FREIRE (2009).
Referências bibliográficas
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CESARINO, Pedro de Niemeyer. Cartografias do cosmos: conhecimento, iconografia e artes verbais entre os Marubo. Mana, v. 19, n. 3. Rio de Janeiro, 2013, p. 437-471.
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