Pablo Matos é especialista em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona (Espanha). Colaborou em diversas instituições culturais no Brasil, como o Centro Cultural Oi Futuro e a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, na qual coordenou a Lei Estadual de Incentivo à Cultura e a implementação do sistema on-line de inscrição e avaliação de projetos.

No Canadá, colaborou em organismos como o Regroupement du Conte au Québec e Culture Montréal, reestruturou o Programa de Acompanhamento Artístico do Montréal, Arts Interculturels (MAI) e contribuiu ativamente na fundação da Machinerie, organismo de mutualização de recursos na área da cultura. Atualmente é mestrando em design de interação pela Université Laval, onde atua como pesquisador na área de design de interação e novas práticas de desenvolvimento social.


Você atuou no Montréal, Arts Interculturels por cinco anos, no programa de acompanhamento de artistas. Poderia comentar a proposta do MAI de apoiar artistas da diversidade e quais foram suas ações nesse projeto? 

O MAI é um centro cultural criado há 17 anos por um grupo de artistas e ativistas que compartilhavam o mesmo desejo: favorecer a diversidade e a equidade de oportunidades na cena artística montrealense. Desde então, o MAI é a única instituição canadense inteiramente dedicada a esse mandato. Em 2005, o Programa de Acompanhamento Artístico foi criado com o objetivo de fomentar a produção criativa de Montreal e se transformou, nos últimos quatro anos, em uma verdadeira referência para a comunidade artística da cidade.

Minha colaboração no MAI como coordenador do Programa de Acompanhamento Artístico teve início somente algumas semanas após minha mudança do Rio de Janeiro para Montreal. Apostando em minha experiência profissional, a direção da instituição me deu carta branca para reestruturar o programa por completo – um desafio enorme para alguém que descobria simultaneamente as questões próprias do novo meio cultural no qual acabava de desembarcar. 

Em toda a minha trajetória profissional busquei entender a gestão cultural sob a ótica do design de serviço. Isso me ajuda muito a compreender a realidade dos múltiplos agentes – externos e internos – envolvidos em dado processo, a identificar suas expectativas e necessidades e suas interações com o processo em questão. Nesse sentido, compreender o contexto no qual o Programa de Acompanhamento Artístico evoluiu desde sua criação era essencial para mim.

Seis meses após assumir o departamento e depois de analisar detalhadamente todos os dados disponíveis desde sua criação, propus uma nova estrutura para o programa. Além de mudanças processuais – informatização do processo de inscrição e de avaliação, criação de um edital consolidado, definição de etapas e critérios de análise de projetos, entre outras –, o programa evoluiu principalmente no que diz respeito ao caráter do fomento que ele oferece à classe artística. 

Minha equipe percebeu que a grande lacuna de investimento nesse setor não era relacionada à produção, mas à pesquisa criativa. A grande maioria dos programas de investimento em cultura foca o resultado: investe-se em um "projeto" no qual, ao fim, um produto cultural deve ser apresentado ao público. Porém, essa estratégia de investimento fecha os olhos para um universo de possibilidades que não estão necessariamente direcionadas à criação de um produto artístico, mas à investigação criativa em si. 

Sob esse olhar, o programa de acompanhamento passou a focar o investimento em pesquisa e desenvolvimento dos artistas da cidade, e não mais o financiamento de "projetos". Nós acreditamos que, no tocante à criação artística em sua essência, o processo seja muito mais importante do que o resultado. Um “produto” é a consequência – e às vezes, mas nem sempre, o resultado – da experiência e do processo criativo, e não a razão mesma de esse processo existir. Então, por que continuar patrocinando artistas somente em função daquilo que eles podem oferecer em troca? Entender isso mudava tudo. 

Essa nova visão também exigia uma profunda reestruturação dos métodos de acompanhamento dos artistas selecionados pelo programa. Meu objetivo maior era criar um verdadeiro polo de pesquisa artística, no qual criadores oriundos de diversas partes do mundo se encontrariam regularmente para trocar experiências sobre a evolução de suas práticas e – por que não? – para colaborar entre si.

A resposta da comunidade artística foi imediata. No mesmo ano do lançamento do novo programa recebemos mais que o dobro de inscrições em relação ao ano anterior. Em apenas dois anos, passamos a receber mais inscrições do que o próprio programa de investimento à diversidade do Conselho de Artes e de Letras da Província do Quebec.

A demanda se tornou tão superior à nossa possibilidade de aporte financeiro (nove vezes maior que o orçamento do meu departamento, para ser mais exato) que estabelecemos parcerias com outras instituições da cidade, como o próprio Conselho de Artes de Montreal, para criar o Programa de Acompanhamento Pareado. Nesse programa, os artistas selecionados recebem um financiamento e um acompanhamento simultâneo de várias instituições parceiras, somando esforços e diminuindo assim o impasse orçamentário com o qual nos confrontávamos na época. Hoje vejo essa estratégia quase como um vírus benigno: ela permitiu nos infiltrar em outras instituições e expandir nosso polo de pesquisa para além dos nossos muros, influenciando outros organismos a investir em desenvolvimento criativo e somando recursos por um bem comum.

No ano passado, decidi deixar o MAI para seguir um novo caminho profissional. Deixei a instituição com um sentimento de dever cumprido ao ver que o programa de acompanhamento já materializava sua vocação de ser um polo intercultural de pesquisa artística. Isso era percebido a cada residência de criação nas salas de ensaio, no teatro ou na galeria. A cada encontro de acompanhamento com os artistas, novas colaborações nasciam de forma autônoma, e a riqueza da trajetória de cada um deles ditava o tom de suas novas investigações criativas.

Hoje, nesse polo, veem-se artistas refugiados colaborando com artistas locais de igual para igual. Uma artista iraniana fundando uma companhia de dança composta exclusivamente de mulheres iranianas – enquanto, em seu país natal, mulheres continuam sendo banidas de dançar em público –, entre tantas outras práticas e histórias de tirar o fôlego.


Outro projeto em que você esteve envolvido durante sua atuação no MAI foi o da Machinerie. Quais foram as ações do programa? Na sua opinião, qual é a importância de pensar em economia colaborativa para a área de cultura? 

A Machinerie é uma plataforma de mutualização de recursos na área da cultura que promove colaborações entre seus membros – sejam eles artistas independentes ou companhias artísticas – e profissionais especializados em gestão e desenvolvimento, administração, produção, comunicação e difusão/distribuição. Ela é fruto de uma reflexão que teve início em 2012, quando um grupo de trabalhadores culturais e artistas se reuniu para discutir sobre os desafios do meio cultural em Montreal. 

Em 2016, esse grupo me convidou para integrar essa reflexão e fazer parte da equipe de fundação e de estruturação da Machinerie. Com base em um profundo estudo de mercado realizado exclusivamente para esse projeto, pudemos compreender a pertinência e o potencial dessa plataforma e, assim, desenvolver os diversos serviços oferecidos pela Machinerie hoje.

Meu papel na equipe foi particularmente ligado à criação de uma identidade própria do organismo e à articulação e estruturação de uma rede de colaboradores da Machinerie. Hoje, ela desempenha um papel importante no mercado cultural de Montreal, dando suporte a artistas que nem sempre dispõem de uma estrutura capaz de materializar todo o potencial de suas criações.

Em geral, vejo com muito otimismo as estratégias de economia colaborativa na área da cultura, muito embora eu acredite que devamos ser absolutamente céticos quanto ao real potencial e aos limites dessa dinâmica. Muito frequentemente, as estratégias ligadas à economia colaborativa no nosso setor são o único curativo possível para a escassez de investimentos públicos na área da cultura. No entanto, o problema continua lá, presente e pulsante, ainda que o setor tente dar um "jeitinho" com o que se tem. Então, que continuemos lutando para que estratégias colaborativas sejam uma opção, e não a única saída possível.


Atualmente você desenvolve pesquisas na área de tecnologia e cultura. Como você analisa a relação entre essas duas áreas? Quais são os principais pontos de convergência e de divergência?
Arte e tecnologia sempre caminharam lado a lado. A pintura, por exemplo, é em si uma tecnologia, uma invenção de determinada época. Talvez o ponto que as une de forma tão íntima seja o fato de a tecnologia ser a aplicação da ciência na resolução de problemas concretos, enquanto a arte é a aplicação de tecnologias na resolução – ou representação ou questionamento – de problemas simbólicos.

Nós vivemos hoje um momento muito efervescente no que tange à tecnologia da informação. A forma com a qual nos comunicamos e nos relacionamos com o outro está em profunda transformação e ninguém sabe ao certo quais tecnologias utilizaremos daqui a 20 anos (ou menos). Isso, sem dúvida nenhuma, impacta profundamente a área da cultura para muito além do formato de nossos futuros produtos culturais. As práticas culturais em si também mudam no mesmo ritmo das mudanças tecnológicas.

Se uma mensagem é transmitida por meio de uma folha de papel ou por uma interface neuronal, não é somente a mídia que muda; a própria mensagem já não será mais a mesma.

 
Nosso cotidiano está muito vinculado ao uso da tecnologia. Na área cultural, por exemplo, é possível observar esse uso em exposições de ferramentas interativas ou na criação de exposições virtuais. A partir da sua experiência em gestão cultural, como você avalia a recepção por parte de público e produção em relação ao uso das novas tecnologias?
Essa questão me fez viajar no tempo, de volta ao início da minha carreira, quando tive a bela oportunidade de colaborar no programa educativo do Oi Futuro, no Rio de Janeiro. Parte importante desse centro cultural é ocupada pelo Museu das Telecomunicações, um museu físico e interativo cuja coleção é majoritariamente digital. Eu estava iniciando uma visita mediada com um grupo de adolescentes quando uma pane de eletricidade desligou todo o prédio, incluindo o acervo digital do museu. Como eu poderia fazer esse grupo descobrir o acervo de um museu que se desliga da tomada? Ao invés de cancelar a visita, decidi entrar assim mesmo e explorar com o grupo esse museu às sombras. Foi, sem dúvida, a melhor visita que já fiz no Oi Futuro. O grupo embarcou na proposta e tivemos uma discussão extremamente rica sobre a relação entre tecnologia e lugar de memória. Nunca vou esquecer esse dia.
 

De forma geral, acho que grande parte das instituições culturais e educativas ainda demoniza as tecnologias, sobretudo as portáteis, como sendo elemento frívolo de distração. No entanto, essas tecnologias têm um potencial enorme nas mãos de um público cada vez mais familiarizado e curioso. Esse público está mais que pronto para receber e criar conteúdos ligados às novas tecnologias, mas grande parte das instituições culturais ainda insiste em suas raízes ancoradas nas práticas do passado. Não estou dizendo de forma alguma que devamos abandonar essas práticas mais tradicionais, mas que talvez devamos buscar diálogos mais intimistas entre elas e a realidade do público e do mundo de hoje. Andar de mãos dadas nos permite sincronizar e acelerar o passo de uma multidão inteira.

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