Por Marcia Pazin
Você já parou para pensar nos tipos de organização que estão presentes em nossa vida? Como organizamos os pagamentos em casa, como classificamos as nossas roupas no armário ou mesmo como organizamos e classificamos nossos livros, os brinquedos dos nossos filhos ou nossos arquivos no computador? Em arquivos, públicos ou privados, existem várias maneiras de classificar a documentação dos acervos e das coleções. É sobre isso que a professora Márcia Pazin fala no texto a seguir.
Classificação em arquivos: por que classificar?
Classificar é um processo implícito às sociedades humanas. Quando falamos em classificação, pensamos na criação de classes, de categorias, de acordo com critérios predefinidos. É o que está definido nos dicionários. Classificar é “distribuir em classes e nos respectivos grupos, de acordo com um sistema ou método de classificação”. Ou “pôr em determinada ordem, arrumar” (HOUAISS, 2012). Nesse sentido, classe seria uma categoria de coisas que separamos de outras, de acordo com um critério preestabelecido visando definir uma ordem compreensível para os interessados.
Todos nós classificamos, desde as coisas mais simples até as mais complexas, com o objetivo de organizar processos rotineiros ou ações complexas. Alimentos poderiam ser classificados simplificadamente por origem, animal e vegetal, e subdivididos em outras categorias como legumes, frutas, verduras, grãos, carnes, manteigas, ovos, leites etc. Outro exemplo bem comum: um guarda-roupa feminino poderia estar dividido entre calças, camisas, vestidos, blusas, casacos. Sendo mais criteriosos, e se o guarda-roupa tivesse tantas opções que assim exigisse, poderíamos estabelecer subclasses: calças jeans, sociais; camisas brancas, azuis, vermelhas... A cada categoria corresponde um grupo específico de coisas, definidas segundo um critério.
Nas ciências biológicas, a classificação categoriza e agrupa os seres vivos por espécies. Teve origem na Antiguidade e vem evoluindo desde então, com base no desenvolvimento das ciências e no estudo e na formulação de conceitos que diferenciem objetos e seres uns dos outros, de maneira cada vez mais aprofundada. Na vertente científica, a classificação requer o uso de critérios claros e bem fundamentados para cumprir seus objetivos de organização e categorização.
Na arquivologia não poderia ser diferente. A ideia de que é necessário classificar está relacionada a todo o processo de organização dos arquivos. A classificação arquivística prevê o estabelecimento de uma estrutura lógica de classes, conforme as funções e atividades que são realizadas pelas organizações e pessoas. E também de acordo com os documentos que são criados para formalizar e registrar essas funções e atividades.
Numa organização, seja ela pública ou privada, de caráter econômico (empresas) ou social (entidades, fundações, associações), o exercício de funções e atividades produz documentos que representam os fluxos formais de informação que ocorrem nas diversas áreas. Cada ação envolve a produção e a circulação de informações que influenciarão uma série de outras ações posteriores a elas relacionadas.
Na classificação realiza-se uma separação hierarquizada entre ações, de acordo com a sua natureza, definindo diferentes categorias. A reunião de determinadas ações dentro de uma categoria e a subdivisão das diversas partes dessa ação correspondem ao processo de criação de classes ou grupos e à distribuição de séries documentais em cada um deles.
Vamos pensar em um exemplo simples que ocorre em todas as organizações. A atividade de registro de funcionários está diretamente relacionada às atividades de controle de frequência e de pagamento desses mesmos funcionários. Essas atividades darão origem também aos registros de cumprimento de férias, após passado o período de aquisição.
Ao classificarmos, identificamos as conexões existentes entre as atividades de registro funcional, registro de frequência, pagamento de salários e de férias unindo-as no mesmo grupo, mas separando cada atividade e relacionando-a com o tipo documental específico criado para registrá-la.
Esse processo é importante porque cada um dos documentos tem uma vida razoavelmente independente no arquivo, mas se relaciona com os demais no âmbito das funções desempenhadas, formando a rede de relacionamentos aos quais esses e outros documentos estão definitivamente ligados. É o que chamamos de organicidade dos documentos de arquivo: “A qualidade segundo a qual os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora em suas relações internas e externas” (CAMARGO et al, 2010). Em outra definição poderíamos dizer que a organicidade está representada na relação natural existente entre os documentos de um arquivo, que estabelece o vínculo arquivístico.
Ao classificar documentos de arquivo, o que se pretende é reestabelecer estas conexões que nascem na produção do documento, durante o processo de gestão administrativa, mas que podem ficar ocultas em virtude das características dos processos administrativos ou de problemas em seu gerenciamento.
Plano de classificação
Desse processo resulta do plano de classificação, que resume de maneira estruturada as classes e subclasses, grupos, subgrupos e séries documentais, entre outras denominações possíveis, existentes no acervo documental. Como todo instrumento de planejamento, o plano define a estrutura de organização do acervo, tanto no estabelecimento de códigos de identificação, quanto na organização física dos documentos.
Mas a classificação é importante também no processo de avaliação documental, quando ocorre a destinação dos documentos e a elaboração da tabela de temporalidade. A análise dos grupos (classes), subgrupos (subclasses), séries documentais e de seus vínculos, a partir das definições do plano de classificação, possibilita a adequada valoração de cada conjunto documental. A atribuição de valor deve considerar a posição de cada tipo de documento, as atividades e as funções que ele representa em relação aos demais.
Os dois processos, classificação e avaliação, são condicionados por uma série de atributos da estrutura e dos processos administrativos das organizações. No ambiente público ou no privado, a produção documental é determinada pelas características administrativas e pelas diferenças existentes entre a gestão pública e a gestão privada. A existência de legislação e de procedimentos operacionais específicos modifica o processo em cada um dos setores.
Público x privado
O caráter processual que prevalece na produção documental da gestão de órgãos públicos brasileiros faz predominar a existência de documentos que não se encontram no ambiente privado. Processos administrativos e expedientes são espécies documentais pouco encontradas em organizações privadas. E, mesmo quando existem, possuem menos formalidade que os similares públicos pelo fato de que a estrutura de legitimação das ações administrativas no âmbito privado pode obedecer a procedimentos muito mais simplificados do que nas ações administrativas públicas.
Muito embora tenhamos a impressão de que existem grandes diferenças, essa talvez seja a principal especificidade a interferir no processo classificatório de órgãos públicos e entidades privadas: as espécies e os tipos documentais produzidos.
De forma geral, o diagnóstico dos arquivos e a identificação da produção documental são etapas essenciais para a classificação arquivística. O primeiro movimento – de estudar o contexto de produção documental, a realidade arquivística do órgão/organização e os tipos documentais produzidos – é o momento em que se visualizam os vínculos, os procedimentos administrativos e o trâmite que determinarão as classes e subclasses que vão surgir após o processo classificatório.
É nesse momento que começam a transparecer as diferenças entre as esferas pública e privada; e as especificidades de cada organização, de acordo com seus objetivos, funções e atividades desempenhadas. É aí que começamos a classificar.
Marcia Pazin é Doutora e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, é bacharel em História pela mesma universidade. Especialista em Organização de Arquivos, pelo IEB/USP. Docente do curso de Arquivologia no Depto. de Ciência da Informação, da Faculdade de Filosofia e Ciências/UNESP – campus Marília. Foi responsável técnica da Códice - Memória & Arquivo Ltda e Gerente de Documentação e Projetos da Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento. Atuou como docente no curso de pós-graduação em Gestão Arquivística da Fundação Escola de Sociologia e Política-FESPSP e do no curso de Especialização em Organização de Arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB/USP. É autora de diversos artigos e do livro Arquivos de organizações privadas: funções administrativas e tipos documentais.