Por Maria Esther Maciel
Os animais sempre frequentaram o imaginário cultural da humanidade, sob diferentes configurações poéticas, artísticas, religiosas e filosóficas, evidenciando a nossa intrínseca (e milenar) relação com os viventes que compartilham conosco a experiência do mundo.
No Ocidente, toda uma tradição zoo, feita de seres reais e fantásticos, pode ser traçada nas artes e na literatura desde os tempos mais remotos, sob o influxo direto dos mitos, crenças e saberes populares de origens variadas. Sobretudo a partir das fábulas de Esopo, dotadas de um tom sentencioso, e dos compêndios zoológicos do mundo antigo, como A História dos Animais, de Aristóteles, a presença dos animais foi ostensiva nas letras greco-latinas do mundo clássico. Obras poético-ficcionais – a exemplo de O Asno de Ouro, de Apuleio, e As Metamorfoses, de Ovídio – também vieram se somar posteriormente a esse repertório, junto com os volumes dedicados a animais que compõem a monumental História Natural de Plínio, o Velho, do início da era cristã.
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Na Idade Média, além dos tratados enciclopédicos que se voltaram para a sondagem do reino animal, toda uma cadeia de imagens, símbolos e alegorias se formou em torno da esfera zoo, dando origem aos bestiários, os quais proliferaram sobretudo a partir do século XII, na Europa. Consta que o modelo por excelência para o surgimento desses manuscritos ilustrados, cheios de descrições de animais reais e fabulosos, com uma explícita carga religiosa e moral, foi um livro de autoria incerta, provavelmente escrito no século II, na Alexandria, sob o título O Fisiólogo. Nele, encontra-se toda uma reconstituição alegórica do mundo zoo, à luz do imaginário cristão, com descrições de animais feitas a partir de referências bíblicas, mescladas aos saberes acumulados pelos naturalistas do mundo antigo. Bastante popular, ela se espalhou pela Europa, passando a servir como fonte provedora de referências para os bestiários medievais.
O fato é que tais livros literário-iconográficos se disseminaram, a partir de então, adquirindo variados matizes e funções em cada território onde aportaram. Em geral, compunham-se de imagens e textos descritivos sobre animais existentes e imaginários, os quais eram, na maior parte das vezes, divididos em quatro categorias: telúricos, aquáticos, aéreos e ígneos. Se num primeiro momento essas obras tinham uma função religiosa e moral, aos poucos elas se diversificaram, incorporando elementos eróticos e satíricos. Contaminaram, ainda, diferentes práticas culturais do tempo, como a escultura, a pintura, a tapeçaria, o vestuário e a decoração de utensílios.
Essa expansão contribuiu, assim, para pluralizar ainda mais o próprio conceito de bestiário, à medida que este deixou de se circunscrever aos livros ilustrados, pseudocientíficos e de caráter edificante, para abranger novas formas artísticas. O que lhes conferiu múltiplos sentidos nos séculos subsequentes.
Se, a partir do século XVI, os bestiários se tornaram provedores de referências para a tradição enciclopédica renascentista, eles não deixaram também de contaminar os registros dos viajantes europeus ao território latino-americano, os quais apresentaram ricas e prodigiosas descrições da fauna do chamado Novo Mundo.
Vieram à tona, nesse contexto, relatos zoológicos de diversos viajantes, como Pero Vaz de Caminha, Gandavo, Gabriel Soares, os jesuítas, os viajantes alemães (como Ulrico Schmidel e Hans Staden), o espanhol Cabeza de Vaca e o francês André Thevet, que se dedicaram a descrever papagaios, cobras, tatus, gambás, tucanos, iguanas, macacos, entre outros animais encontrados na fauna do continente, complementando seus relatos com detalhes muitas vezes fantásticos.
No que diz respeito a esses relatos sobre a fauna brasileira, uma deliciosa compilação pode ser encontrada, por exemplo, no livro Zoologia Fantástica do Brasil (1934), de Afonso de Escragnolle Taunay, também autor de Monstros e Monstrengos do Brasil (1937), dedicado ao mesmo tema. Em ambas, o historiador catarinense não só faz uma recolha exaustiva da variedade zoológica do país, tal como esta foi registrada por alguns dos cronistas europeus, como ainda investiga as interações desses relatos com a mitologia clássica, os bestiários medievais e as lendas indígenas latino-americanas.
Assim, deflagradas pela profusão das zoocoleções antigas, medievais e renascentistas, muitas outras sugiram e se desdobraram ao longo dos séculos seguintes, sob distintas nuances, em países e culturas do mundo ocidental. Mas o período que marcou a grande virada na maneira de lidar com o mundo zoológico e, consequentemente, propiciou novas abordagens literárias e estéticas dos animais foi, sem dúvida, o século XVIII, com o advento da modernidade e o avanço das ciências da vida.
Esvaziados de seus enigmas e sortilégios, os animais passaram a ser investigados, a partir de então, à luz de critérios científicos bem definidos, seja sob os imperativos de uma taxonomia rigorosa, como a de Lineu, que já não mais acolhia os excessos fantasiosos e supersticiosos da tradição enciclopédica anterior, seja pelo surgimento das ciências de observação e experimentação que precederam o surgimento dos zoológicos na Europa e abriram terreno para as teorias cientificistas, em especial o evolucionismo de Charles Darwin, que evidencia as origens animais do humano.
Essa “virada” contagiará, inevitavelmente, a produção simbólica em torno dos viventes não humanos e de nossas interações com eles. A presença dos animais na literatura e nas artes ganha, assim, insuspeitados contornos e uma notável complexidade. Tomados como animais-animais, que sentem, sofrem, possuem habilidades próprias e saberes sobre o mundo, eles passam a povoar o imaginário da literatura e das artes modernas, a partir de uma perspectiva mais ética e não circunscrita unicamente aos recursos da metáfora, da alegoria, do antropomorfismo e da metamorfose. Nesse sentido, os bichos perdem sua caracterização como “bestas”.
Tais mudanças, entretanto, não significaram um mero descarte dos elementos fantásticos, simbólicos e alegóricos para que uma visão realista do mundo zoo se impusesse no horizonte da criação. Os exercícios da imaginação continuaram a existir no mundo moderno, só que reinventados à luz de outras referências, como fez Franz Kafka – um dos autores responsáveis por esse outro enfoque –, que reconfigurou, por vias surpreendentes, as ideias de antropomorfismo e metamorfose.
No contexto latino-americano, uma obra medular dessa nova safra de viés fantástico é o Manual de Zoologia Fantástica (1957), de Jorge Luis Borges, composto de um inventário descritivo de seres incomuns, que reimagina a tradição zooliterária dos séculos passados. O mais curioso é que, no prólogo desse livro, o escritor argentino se refere à “desatinada variedade do reino animal” do mundo zoo para falar da existência de dois tipos de zoológicos: o da realidade e o das mitologias (ou dos sonhos). Mesmo considerando o segundo mais pobre que o primeiro, ele opta por levar às páginas de seu manual os seres híbridos, fabulosos e monstruosos, valendo-se do legado mitológico, erudito e literário de diversas tradições do Ocidente e do Oriente.
Como Borges, vários outros escritores da segunda metade do século XX lançaram-se a essa aventura de retomar, por vias inventivas e irônicas, as tradições animalistas antigas, abrindo terreno para que experiências instigantes nesse campo proliferassem ao longo das décadas seguintes, em distintos países do Ocidente. Especialmente na América Latina, essa vertente se aclimatou com bastante vitalidade, vide escritores como o guatemalteco Augusto Monterroso, os mexicanos Juan José Arreola e José Emilio Pacheco, o uruguaio Victor Sosa e o brasileiro (paranaense) Wilson Bueno, autor de Manual de Zoofilia (1991) e Jardim Zoológico (1999). Todos eles autores que lograram mesclar, de maneira inovadora e surpreendente, a zoologia da realidade e a dos sonhos.
Vale lembrar que, antes de Bueno, muitos foram os escritores brasileiros do século XX que incursionaram no mundo zoo, criando não apenas coleções de verbetes animais, como fizeram Guimarães Rosa (vide as séries “Zoo” e “Aquário” de Ave Palavra) e Murilo Mendes (na seção “Microzoo”, de Poliedro), mas também levando animais de várias espécies para suas obras, como Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Hilda Hilst, João Alphonsus e Murilo Rubião, só para citar alguns.
Hoje, mais do que nunca, os animais literários proliferam no cenário das letras brasileiras. Um dos livros mais interessantes nesse campo é Jaula (2006), da poeta amazonense Astrid Cabral, que traz uma série de poemas sobre bichos selvagens e domésticos, com ênfase nos que compõem a exuberante fauna da Amazônia. Obras de Sérgio Medeiros, Nuno Ramos, Regina Rheda, Josely Baptista Vianna, Rubens Figueiredo e Eucanaã Ferraz, entre outros, integram esse repertório que, a cada momento, se expande de forma prismática no cenário atual.
Seja ao mesclar as zoologias da realidade e a dos sonhos, seja ao reinventar a tradição das fábulas e dos bestiários ou privilegiarem os animais existentes, todos esses escritores mantêm viva a presença dos bichos no imaginário cultural contemporâneo. Atentos às questões ético-ecológicas do nosso tempo e às interações entre homens e animais, eles buscam, além de tudo, exercitar a animalidade que nos habita e reconfigurar, fora dos limites do antropocentrismo, o próprio conceito de humano.
Acrescente-se a isso que não só na literatura esse movimento se dá a ver de forma contundente. São numerosas, hoje, as manifestações zoopoéticas nas artes plásticas, no cinema e em outros meios audiovisuais, como evidencia a mostra cinematográfica Álbum Animado de Bestiários, em exibição no site do Itaú Cultural entre 11 e 30 de julho de 2020. Com dez filmes sobre animais reais, surreais, fantásticos, comuns e inclassificáveis, ela pluraliza a ideia de bestiário, além de abordar temas relevantes para o debate contemporâneo sobre a questão dos animais e nossas complexas relações com eles.
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Maria Esther Maciel é escritora, pesquisadora e crítica literária. Professora titular de literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atua como professora colaboradora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou, entre outros, os livros de ensaio O Animal Escrito – um Olhar sobre a Zooliteratura Contemporânea (2009), Pensar/Escrever o Animal – Ensaios de Zoopoética e Biopolítica (org. 2011) e Literatura e Animalidade (2016). É também autora de vários outros livros, nos campos do ensaio, da narrativa, da poesia e da crônica.