por Tiago Barbosa D'Ambrosio

 

Nesta série sobre a relação entre arte e espaço urbano, entrevistamos o grupo Contrafilé, dedicado a refletir artisticamente sobre diversas experiências e temas do cotidiano urbano, tendo a educação e a política como meio e forma de ação. Com seus projetos, o grupo já investigou temas como a infância, o encarceramento, o brincar e a escola – a partir dos quais tiveram origem diferentes publicações.

Formado em São Paulo no ano 2000, o Grupo Contrafilé é um coletivo de arte-política-educação que cria possibilidades de praticar o direito à invenção de cidade. Dentre seus projetos, se destacam: Programa para a Descatracalização da Própria Vida (2004) e A Rebelião das Crianças (2005) - que deu origem ao Parque para Brincar e Pensar (2011) e ao Quintal (2013). O grupo participou de importantes mostras, tais como: Playgrounds 2016 (MASP, São Paulo, 2016), 31ª Bienal de Arte de São Paulo (2014), Radical Education (Eslovênia, 2008), If You See Something Say Something (Austrália, 2007), La Normalidad (Argentina, 2006) e Collective Creativity (Alemanha, 2005). Participam hoje do grupo: Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi, Jerusa Messina e Rafael Leona. Confira a entrevista.

Espaço-dispositivo na exposição Playgrounds realizada no MASP, 2016.
(Foto: Julio Cardoso)

Contem um pouco sobre a atuação e os projetos do Contrafilé.

O grupo Contrafilé foi formado em 2000, como desdobramento do grupo Mico, que atuou em São Paulo do final dos anos 1990 ao começo de 2000. O grupo surgiu da urgência de seus integrantes em manter vivo um espaço e tempo autônomos para a produção de pensamentos, perguntas, reflexões e ações artísticas que partissem das experiências cotidianas de seus participantes. Assim, tornou-se um espaço bastante íntimo, no qual uma série de problemas – sociais, políticos – podem ser compartilhados a partir de seus atravessamentos em nossos corpos e vidas. E, para compartilhar problemas macropolíticos a partir de seus efeitos no corpo, fomos criando modos de escutar os problemas, de nos escutar e de desenvolver processos investigativos a partir dessa escuta ativa e interessada. Portanto, não nos interessa tanto pesquisar uma linguagem artística específica – como performance, intervenção urbana etc. –, nem mesmo um tema ou assunto único; as linguagens, questões, formas e tempos de cada processo surgem de suas próprias necessidades, são os problemas que apontam e convocam suas experimentações formais e metodológicas. E assim vamos percorrendo diversos caminhos como “obra”.

Nesses anos, ao nos interessarmos por modos de escutar o corpo e seus afetos – o que chamamos de escala 1:1 –, fomos também criando ferramentas de encontro, ou seja, fomos percebendo que o ato de escutar e encontrar o próprio corpo, diante do corpo do outro, é também o ato de produzir um corpo coletivo, um corpo que se abre e se disponibiliza para “estar com”, que enfrenta os riscos da alteridade, as tensões produtivas de se colocar junto com uma diversidade de modos de existir. Em nossos projetos, isso tem se traduzido em um constante exercício de fortalecer alianças, de nos aproximar de movimentos sociais, culturais, comunidades, grupos, e de inventar situações para que distintas pessoas estejam juntas, potencializando uma infinidade de relações “proibidas” ou inesperadas.

Em 2004, no projeto Zona de Ação (Z.A.), o Contrafilé criou o Programa para a Descatracalização da Própria Vida. O Z.A. tinha uma estrutura bastante simples – éramos cinco coletivos e cada um deveria pesquisar e atuar em uma zona da cidade: norte, sul, leste, oeste e centro. Além disso, acompanhava-nos uma dupla de teóricos-ativistas, colaboradores dos processos singulares de cada grupo – Brian Holmes e Suely Rolnik. As investigações realizadas nos territórios físicos da cidade geraram ações, intervenções que, depois de acontecerem na cidade, migraram para uma exposição dentro do Sesc, que sediava e apoiava o evento. Para o Contrafilé, que desde a sua origem partia do território do corpo, dos afetos da cidade nas experiências mais íntimas, ter a obrigação de agir sobre um território específico gerou certa crise. Não queríamos produzir ações que “falassem sobre” um bairro ou uma área da cidade, já que sempre nos interessou entender a cidade a partir dos efeitos do urbano na vida, de sua complexidade de camadas, e não de um lugar fixo. Foi da própria crise instaurada no interior do grupo que a catraca surgiu como dispositivo revelador de forças – das visíveis às invisíveis; das macro às micropolíticas. O Programa para a Descatracalização da Própria Vida foi uma maneira que o grupo encontrou de trazer para o corpo, para a “própria vida”, uma série de discussões sobre a cidade e suas formas de controle. Assim, nos encontros que fizemos em Itaquera, na Zona Leste, conversamos com distintas pessoas, atuantes nas mais diversas áreas, sobre como, quando e onde a catraca se manifesta em suas experiências cotidianas e produzimos juntos, nessas conversas, um ziguezague entre problemas locais e globais.

Esse projeto tornou-se de fato um “programa público” ao tomar proporções para além de nossa ação pontual, intervindo de modo potente no corpo social. Com ele percebemos o quanto um gesto pode mexer com estruturas dadas e fixas e, daí, o quanto se torna importante, a cada processo, perceber todas as camadas que ele envolve – do que se manifesta no corpo do grupo ao que abre no corpo do mundo. Não à toa dizemos, desde o início de nosso trabalho, que estamos criando um lugar onde arte, política e educação se encontram. Educação, aqui, entendida como autoeducação, como possibilidade de cada um se transformar, aprender e ensinar, a partir daquilo que os projetos mobilizam e suscitam.

Como vocês trabalham a relação com o espaço urbano?

A relação com o espaço urbano está presente em todos os trabalhos do grupo, mesmo quando não aparece de maneira óbvia ou direta, e é uma relação que não está presente como tema ou apenas como conteúdo. O espaço urbano é um meio através do qual trabalhamos nas performances e na forma de lidar com as questões. A performatização no nosso trabalho se dá sempre em relação a esse espaço, ajudando-nos a entender que a cidade não está pronta e o espaço público não está dado, mas sim em construção. Nesse sentido, brincamos com a própria construção das coisas e, em última instância, com a construção da própria vida, do modo de vida e do ambiente no qual queremos viver. Pelo menos essa é a busca.

De um tempo para cá, a ideia de espaço urbano e de espaço público começou a se transformar em algo diferente do entendimento que tínhamos no começo do nosso processo, em 2001/2002. Naquela época, entendíamos esses espaços como tendo muito a ver com uma noção mais territorial de cidade, de pensamento sobre o espaço, de “ocupar a cidade” e “intervir na cidade”. Conforme fomos entrando em uma dimensão mais micro, mais invisível dos processos, o espaço urbano foi deixando de ser apenas um espaço físico ou um território externo. A ideia do espaço urbano atravessa o território físico, mas está também em territórios não físicos, está no corpo, um corpo que vai se disponibilizando a estar no encontro com um outro. O corpo também é um espaço que vai se tornando público, e o processo que criamos para chegar a uma obra também é um espaço que vai se tornando público e que vai, nesse sentido, conformando o urbano.

Quando estamos em algum processo, por exemplo, na construção do Parque para Brincar e Pensar, no Jardim Miriam, em São Paulo, que durou meses, em todos aqueles encontros, mutirões, rodas e conversas, na própria construção, estamos sempre lidando com várias escalas ao mesmo tempo, desde as mais íntimas até o território público da cidade – naquele caso uma ocupação em um terreno da Eletropaulo. E todos os territórios mais íntimos, das entranhas de cada um, vão se tornando públicos e assim compondo uma nova urbanidade, porque vão sendo compartilhados e virando parte do processo, vão sendo nomeados, inclusive quando entramos em crise, quando paralisamos ou quando chegamos a alguma solução. Tudo isso vem nesse compartilhar de muitos espaços, que são dos corpos, das experiências, de muitas dimensões – internas, externas, físicas e não físicas –, e o “urbano” é tudo isso sendo compartilhado. Está muito aí a noção de espaço público para nós.

Não é assim: “fazemos intervenções na cidade”. Isso já é algo que ultrapassamos há muito tempo, assim como a noção de cidade como um “ente externo a nós”. A cidade somos nós, não o asfalto, o prédio... Definitivamente, cada vez entendemos mais a cidade dessa forma e vemos um entendimento parecido, da cidade como movimento, nas expressões urbanas que estão muito mais presentes hoje em dia. A ideia de cidade como suporte para trabalhar em cima é uma ideia que reduz muito, que reduz a ação a um campo previsível da arte. Reduz a possibilidade de compreensão de uma maleabilidade, de uma pulsão, de uma obra que pulsa, que é plástica, viva, na qual a própria vida urbana é a matéria-prima. Talvez o termo vida urbana seja, então, mais apropriado para o que estamos fazendo e pensando.

"A Rebelião das Crianças", intervenção em viaduto, 2005.
(Foto: Grupo Contrafilé)

De que maneira você acha que a arte pode ser uma ferramenta para a “descatracalização” da vida? E que outras ferramentas você enxerga?

Para nós, a arte é aquilo que ativa a ação, especialmente a ação política, no sentido de produção de mundos. Assim, não é possível encerrar o artista como uma categoria ou uma posição, porque ser artista é, em nosso entendimento, mais uma possibilidade que atravessa todo mundo. A maior “descatracalização” da vida é sermos capazes de reencontrar o mundo, suas forças, entendermos que podemos escolher por onde ir e por onde não ir. Por exemplo, num determinado momento de nossa trajetória, começamos a entender o nosso “engajamento” como uma série de operações materiais e imateriais que nos permitem um “engajamento com o mundo”. Porque, como diz Deleuze, “Nós perdemos o mundo, nos desapossaram dele”; ou “Acreditar no mundo é também suscitar novos espaços-tempo”.

A partir daí, pudemos entender que não precisamos pensar o “engajamento” como um processo exterior a nós, mas como uma experiência que permite um tipo de travessia, um tipo de percurso no qual reencontramos o mundo. E, para essas travessias, uma série de dispositivos é criada. Por exemplo, a partir dos contextos e questões nos quais estamos inseridos, precisamos entender as urgências que emergem ou que emergiram para que estivéssemos ali. Então, torna-se fundamental entender qual é o ponto chave da urgência coletiva, que nos atravessa a todos. Assim, faz parte do nosso engajamento com o mundo a experiência de atravessar certa questão real para nós para melhor compreendê-la. Na verdade, essa travessia se trata justamente da descoberta “do que engaja”. Talvez seja esta a nossa grande e eterna pergunta: “O que nos engaja?”. Os dispositivos para travessia nascem de um lugar tão íntimo que permitem que entremos em crise, que nos tiremos do centro e nos reconfiguremos diante de uma outra experiência de mundo. Permitem que nos vejamos como parte de uma cartografia de relações que antes não era perceptível. Aprendemos sobre nós mesmos. E essa crise acaba sendo propulsora da necessidade de se chegar a um outro lugar. Estamos falando, então, de certo tipo de representação que o Brian Holmes, por exemplo, chama de “representação direta”, na qual a produção de uma evidência de incorporação de diversos aprendizados é o que circula enquanto imagem, produzindo, com isso, imaginação coletiva.

Assim, não é que a arte engajada produza alguma coisa, mas ela é a própria evidência de certo engajamento. É a imagem como desejo de realização, como um devir. E é o nosso corpo realizando esse desejo, um corpo impregnado. Então, quando outra pessoa vê aquele corpo, vê um corpo que está em conexão. Por exemplo, no Monumento à Catraca Invisível, instalação realizada em 2004 no Largo do Arouche para inaugurar o Programa para a Descatracalização da Própria Vida, nós não vemos o corpo, mas o fato de a catraca estar ali denuncia o corpo. Mesmo na ausência do corpo, ele está presente, porque aquilo é evidentemente um gesto; então essa ação denuncia um corpo e anuncia essa corporeidade possível na relação com o ambiente e a cidade, que é a cidade experienciada como arte-fato. É um corpo que está agindo no urbano, não é uma máquina, uma abstração, um urbanista abstrato, uma lei X – é um corpo, e é aí que está a potência, na densidade da imagem, porque é um corpo que carrega uma imagem, ao mesmo tempo que é carregado por ela. Estamos falando, então, do rastro de um corpo, mesmo que ausente, como evidência de que há corpos atuando no espaço material, na escala urbana, de forma inusitada. Esses rastros "forçam" certa emancipação do pensamento daqueles que entram em contato, porque ali algo “escapa”, ou seja, não pode ser totalmente assimilado, e é assim que a força do gesto-imagem persiste como um devir. Esse “devir” pode ser compreendido, em última instância, “como a própria possibilidade de ‘engajar-se’”. E isso como arte.

Como a brincadeira e o trabalho com crianças potencializam essa discussão que vocês propõem?

A brincadeira é uma construção social. Mas quem disse que ela não pode ser transgressora? Que ela tem que se encaixar sempre em papéis sociais estruturados, na casinha, no papai e mamãe, no banqueiro? No momento em que a brincadeira permite repensar e reconstruir o mundo, abre-se um campo importante, um campo criativo no qual se está discutindo as formas da vida e não apenas reproduzindo-as. No movimento secundarista que vimos recentemente, por exemplo, está presente esse “cotidiano invertido”, esse brincar com aquilo que é aparentemente mais banal, pois ele fala de transporte, de escola, então estão aí presentes os modos de vida, os lugares nos quais estamos todos os dias. E eles falam disso do lugar do afeto, do cuidado, do amor pelo espaço, pelas relações, pelas pessoas, por si mesmos(as). Nesse sentido, é um movimento micropolítico, que parte do lugar do corpo: “Estou nesta sala de aula e ela não pode fechar”. É uma rebelião do corpo afetado por uma situação macropolítica autoritária.

Acho que nos identificamos tanto porque já em A Rebelião das Crianças estávamos tentando entrar em contato com esses lugares de afeto, tendo a criança como potência central. Quando entendemos que as ocupações nas escolas têm algo de brincadeira, no sentido de um possível que está ali sendo criado, de uma normalidade que está sendo desafiada, estamos entendendo que ali está o sentido vital da brincadeira, um estado que é de rebelião, que coincide com o próprio estado criança. Depois, em A Árvore-Escola, discutimos a escola não como quatro paredes, mas como um ser vivo, os seres vivos sendo as verdadeiras escolas, os verdadeiros lugares de sabedoria. Outro aspecto muito importante de colocar a criança no centro, como uma perspectiva da qual partir e que nos atravessa a todos, é que passamos a compreender melhor o princípio de que “o como se ensina é o que se ensina” – um princípio totalmente presente no movimento secundarista. Assim, uma escola hospitaleira, por exemplo, é uma escola de hospitalidade. O que se ensina sobre algo é como isso está ali colocado, não há como ensinar uma coisa e fazer outra.

O grito de guerra dos secundaristas de luta, que é “escola de luta”, mostra que o movimento se transformou, em si, em uma escola de luta. Como a construção de uma escola, por exemplo, pode se transformar em uma escola de construção. Isso tem tudo a ver com o que falamos a respeito do espaço urbano não como “tema”: a brincadeira e a criança não são para nós apenas conteúdos, ou apenas formas, mas sobretudo forças. Esse tipo de metalinguagem, na qual a cobra come o próprio rabo, é muito potente. Um professor que fala uma coisa enquanto faz outra está ensinando o quê? Talvez assim se explique o nosso desejo de discutir uma coisa enquanto fazemos essa própria coisa. É aí que está o pedagógico no nosso trabalho.

"Mujawara da Árvore-Escola" na 31ª Bienal de Arte de São Paulo, 2014.
(Foto: Grupo Contrafilé)

 

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