por Ramon Vitral

 

Certa vez o pesquisador, crítico e curador inglês Paul Gravett listou para mim as obras-primas das HQs mundiais no século XXI, na sua opinião: A Chegada, de Shaun Tan; Building Stories, de Chris Ware; Asterios Polyp, de David Mazzucchelli; Aqui, de Richard McGuire; Tamara Drewe, de Posy Simmonds; Walking the Dog, de David Hughes; Fun Home, de Alison Bechdel; Aurora nas Sombras, de Fabien Vehlmann e Kerascoët; Estigmas, de Lorenzo Mattotti e Claudio Piersanti; Alpha, de Jens Harder; e Sunny, de Taiyo Matsumoto.

Das 11 obras que Gravett, um dos maiores especialistas em quadrinhos do mundo, citou em 2017, já foram publicadas em português A Chegada (SM), Asterios Polyp (Companhia das Letras), Aqui (Companhia das Letras), Fun Home (Todavia), Aurora nas Sombras (DarkSide Books) e Estigmas (Conrad). Essa lista acaba de ganhar um sétimo título com o lançamento de Sunny.

Ilustração de Taiyo Matsmumoto presente em "Sunny" (imagem: Divulgação/Editora Devir)

Publicada originalmente entre dezembro de 2010 e julho de 2015, em periódicos japoneses de histórias em quadrinhos, a obra de Taiyo Matsumoto sairá por aqui em três volumes pela editora Devir, com tradução de Arnaldo Oka. Recém-chegada às livrarias, a primeira edição tem 420 páginas, 16 delas coloridas e as demais em preto e branco, assim como no original. Os editores nacionais têm planos de dar continuidade à série no segundo semestre de 2020.

A obra prévia de Matsumoto publicada no Brasil é a violenta Tekkon Kinkreet – relançada em 2019 pela Devir após sair em português no começo dos anos 2000 com o título Preto e Branco –, sobre dois órfãos que combatem criminosos que tentam tomar o controle da cidade habitada por eles. Apesar de Tekkon Kinkreet também ser apontada como um clássico moderno das HQs japonesas, Sunny é constantemente citada como “a obra mais pessoal de Taiyo Matsumoto”.

Hoje aos 53 anos, o quadrinista passou grande parte de sua infância e adolescência em casas de acolhimento para órfãos e crianças de famílias carentes semelhantes ao Jardim Escola Hoshinoko, na qual Sunny é ambientada. A HQ foca a rotina, os sonhos e as desilusões das crianças que residem no local. O título vem da marca do carro abandonado no quintal do abrigo e constantemente ocupado pelas crianças em seus momentos de lazer.

“É uma obra bem sensível, diferente de algo mais dinâmico e de toda a ação que tem no Tekkon Kinkreet e no Takemitsu Zamurai”, me disse o quadrinista brasileiro Marcelo D’Salete, autor dos premiados Cumbe e Angola Janga, sobre suas impressões de Sunny em comparação com outras HQs de Matsumoto. “É um trabalho mais particular e muito delicado, bonito de ver pela forma como o tempo se dá, bem dilatado, pegando detalhes do olhar e de expressão dos personagens.”

Vencedor dos prêmios Jabuti, HQMix, Grampo e Eisner, D’Salete é um dos mais renomados autores de histórias em quadrinhos no Brasil e não é o único de sua geração a assumir o impacto de Sunny e das demais obras de Matsumoto em seu estilo e suas técnicas de trabalho. “Além do fato de que ele representa um ponto muito fora da curva do tradicional estilo mangá, um raro caso de desenhista e narrador japonês que sofreu forte contaminação das escolas europeias, ele tem uma capacidade muito impressionante de criar relações afetivas entre personagens”, analisa Rafael Coutinho, autor de Mensur e O Beijo Adolescente.

Rafael continua sobre Matsumoto: “Para mim ele foi o autor que realmente me fez ver quadrinho como uma narrativa de romance, algo que eu só encontrava lendo literatura. E, por ser o desenhista estupendo que ele é, a experiência se torna muito mais impactante do que se fosse só texto. Ele me ensinou também a importância dos silêncios, como apresentar o ambiente como fio condutor, o avião que passa, o cachorro que late, as repetições formando um cotidiano narrativo que apoia e multiplica o drama dos personagens”.

D’Salete e Coutinho sintetizam em suas falas o ponto alto de Sunny: as interações entre seus protagonistas. Além de todo o domínio de Matsumoto no uso da linguagem das histórias em quadrinhos, a obra se destaca nas trocas entre seus personagens. A HQ tem início com a chegada do jovem e introspectivo Sei ao Jardim Escola Hoshinoko.

Abandonado no local pelos pais, Sei faz amizade com o rebelde e tempestuoso Haruo, a doce Megumu e o frenético Junsuke. Cada um deles e outros moradores do local ganham suas oportunidades de brilhar ao longo dos três volumes da série. Sunny soa como um documentário melancólico sobre os sentimentos conflitantes dessas crianças, felizes entre si, mas tristes pelo distanciamento de suas famílias.

“Foi a última obra narrativa que me fez chorar no banheiro (porque não conseguia largar nem para ir ao banheiro)”, conta Rafael Coutinho. “É uma obra completa, os três livros são fundamentais para o todo, cada um abre visões desse orfanato de cada criança que vive lá, visões que se complementam. Não há nada de óbvio no livro, é algo muito único. E também é uma história reta, sem experimentações narrativas. É de longe uma das obras mais honestas e inteiras que li.”

D’Salete faz coro aos dotes técnicos de Matsumoto: “O que mais me chama atenção é a forma de trabalhar com o desenho, o traço, muito sinuoso e bonito. A forma de trabalhar com o preto e branco e a forma como ele consegue criar cenas muito engenhosas, pelos ângulos que escolhe para cada um dos quadrinhos, seja para os momentos mais contemplativos, seja para os momentos de maior ação dentro de uma história”.

O autor de Angola Janga diz ter sido impactado pelo trabalho de Matsumoto desde o início de sua carreira, reproduzindo muitas das técnicas e dos estilos do artista japonês em sua produção. D’Salete atribui a ele, por exemplo, sua opção por trabalhar com canetas nanquim de espessuras 0.2 e 0.3 desde seus primeiros livros.

Ele ainda ressalta a narrativa do autor de Sunny: “Há a forma como ele trabalha muito bem com quadros mais horizontais. Isso me lembra bastante o cinema, a forma de composição da fotografia no cinema. Além disso, algo que Taiyo me ensinou bastante foi como trabalhar com cenas concomitantes, como trabalhar com cenas que acontecem ao mesmo tempo. E como seguir uma narrativa desse modo de uma forma eficiente. É muito sofisticado”.

Bienal de Quadrinhos de Curitiba adiada para 2021

Na terceira edição da Sarjeta, publicada em dezembro de 2019, comentei como 2020 seria marcado pelo combo Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, e Bienal de Quadrinhos de Curitiba, na capital paranaense. Então, na sexta Sarjeta, publicada em março de 2020, noticiei o adiamento do FIQ por causa da pandemia do novo coronavírus. Os organizadores do evento na capital de Minas Gerais ainda não anunciaram nova data.

Agora, infelizmente, deixo registrado aqui o adiamento da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, também em decorrência da pandemia. A sexta edição do evento foi adiada para 2021, ainda sem data definida, e mantendo música e quadrinhos como tema principal. Os organizadores prometeram outras informações para um futuro próximo, assim como novidades sobre um evento virtual ainda em 2020.

Uma tira do cartunista Pietro Soldi (imagem: Divulgação/Pietro Soldi)

Três perguntas para… Pietro Soldi, cartunista

Encerro esta oitava edição da coluna com uma breve entrevista com o cartunista Pietro Soldi. Você encontra as tiras dele no Instagram (@pietro.soldi) e em colaborações para publicações como o jornal Folha de S.Paulo e a revista Trip.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Especificamente, em um momento como o que estamos vivendo, acho interessante ver de que maneira o pessoal do desenho tem reagido a esta situação toda. Acho interessante ver como uma alteração na normalidade interfere na produção dos artistas. Acredito que em futuro próximo veremos muitos trabalhos que foram influenciados diretamente por este período.

Como leitor e autor, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Por gostar de literatura, quadrinhos bem escritos me interessam bastante. Gosto muito quando o quadrinho, além de ter um desenho e uma história interessante, tem um texto bem construído. Aprecio autores que escrevem com estilo e trabalham bem a forma do texto além do seu conteúdo. Por essas e outras razões, os trabalhos do Rafa Coutinho, do Wagner Willian e do Marcelo Quintanilha me agradam muito. Tudo começa no texto, eu tenho de escrever tudo antes de desenhar, senão me perco e não saio do lugar.

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Parece que quando aprendi a andar logo alcancei uns Moebius do meu pai e os destruí todos, mas disso não me lembro. Minha memória mais antiga de quadrinhos é com As Aventuras de Tintim. Tenho flashes de folhear os quadrinhos sem saber ler, mas lembro perfeitamente de assistir ao desenho animado na TV Cultura. Depois, com uns 14 anos, pedi uma assinatura da Folha de S.Paulo para minha mãe, e a primeira coisa que eu fazia quando pegava o jornal na mão era ver o que a Laerte ou o Angeli tinham desenhado naquele dia. Era fascinante ver que eles publicavam um desenho novo todos os dias, me impressionava ver a quantidade de ideias que eles conseguiam ter.

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Leituras em tempos de pandemia

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