HQ narra frenesi sexual zumbi em adaptação sem reverência à obra de H. P. Lovecraft
23/08/2020 - 08:00
por Ramon Vitral
Não espere nenhuma condescendência por parte do quadrinista Juscelino Neco com o escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937) nem com um de seus trabalhos mais famosos, Herbert West-Reanimator, conto publicado em 1922. Neco não vê muitos méritos nessa obra de quase cem anos, além do fato de ser uma das primeiras histórias sobre zumbis.
“Sendo bem sincero, acho esse conto uma merda”, me disse o artista. “É um pastiche safado, coisa de começo de carreira. Até o Lovecraft achar seu ‘estilo’, vamos chamar assim na falta de uma palavra melhor, ele fazia muito pastiche de outros escritores, principalmente Edgar Allan Poe”, diz o quadrinista.
Mas pergunte a Neco sobre o filme Re-Animator: a Hora dos Mortos-Vivos (1985). O clássico trash dirigido por Stuart Gordon é inspirado no texto de Lovecraft sobre o empenho do médico Herbert West em criar um soro capaz de ressuscitar os mortos e sobre a inevitável perda de controle do cientista sobre seus experimentos.
“Adoro a mistura de terror e humor. Os efeitos são ótimos! A violência é maravilhosa. Tem muito a cara do terror dos anos 1980, aquela mistura de transgressão, criatividade, baixo-orçamento e picaretagem”, comenta.
Agora é a vez de Neco apresentar sua versão dessa mesma história. Ele é o autor de Reanimator, HQ de 152 páginas em preto e branco publicada pela editora Veneta. Ele criou um enredo próprio a partir da trama do conto de Lovecraft e do filme de Gordon e transformou os protagonistas em animais antropomorfizados. O dr. Herbert West, responsável pelos experimentos com os mortos, agora é um rato.
No Reanimator de Neco, o soro de West ressuscita os mortos e instaura um frenesi sexual incontrolável nos zumbis e em suas vítimas. Sobram sexo, violência e humor nonsense em uma obra com ares antropofágicos. No caso, eu me refiro ao movimento antropofágico e suas deglutições de referências estrangeiras, apesar da HQ também conter uma ou outra cena de antropofagia.
“Acredito que consegui levar a coisa toda para um novo nível de infâmia”, disse o autor. Não seria a primeira vez.
Juscelino Neco é responsável por algumas das obras mais bizarras da história recente dos quadrinhos nacionais. Sua HQ de estreia foi a frenética Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço (Veneta), de 2013, sobre um indivíduo que sobrevive a um incidente em que acaba com um parafuso cravado na testa e dá início a uma jornada de confronto com mortos-vivos e alienígenas.
Em 2016, ele publicou a violentíssima Matadouro de Unicórnios (Veneta), sobre um escritor contratado para escrever a biografia de um serial killer que acaba fascinado e inspirado nos crimes e nas práticas de seu biografado.
Entre uma e outra, em 2015, publicou o livro Zumbis para Colorir, com diversas personalidades em diferentes estados de decomposição em preto e branco, no aguardo das cores do leitor. Mais recentemente, ele publicou as curtas e macabras Cadeado (décima edição da coleção Ugrito) e A Noite dos Homens-Peixe (independente), essa última em parceria com Gabriel Dantas.
A Reanimator de Neco é possivelmente seu trabalho mais bruto e brusco. Ele removeu os tons cinza de seus títulos prévios, investiu nas hachuras, eliminou qualquer nuance de seus personagens e acelerou o ritmo da história. Entre suas inspirações, estão as clássicas Fritz the Cat, do norte-americano Robert Crumb, e Squeak the Mouse, do italiano Massimo Mattioli.
“Em termos de narrativa, tentei estabelecer uma trama que vai escalonando a bizarrice a níveis cada vez mais absurdos”, refletiu sobre sua HQ.
Também foi o trabalho do autor que levou mais tempo para ser finalizado. Ele fechou o roteiro em 2016, mas chegou a cogitar abandonar o projeto mais de uma vez.
“A produção de Reanimator realmente foi meu Vietnã. Eu me sentia incapaz de terminar esse quadrinho. Foi um inferno. No ano passado, pensei até em queimar tudo e deixar isso para lá. Felizmente, fui dissuadido da ideia pelos meus amiguinhos, os astros se alinharam e consegui finalizar. Fico feliz por deixar o mundo mais estranho.”
Entre as estranhezas dessa versão de Neco para as obras de Lovecraft e Gordon, está a opção pelos personagens antropomorfizados. Fora a versão roedora do personagem principal, o leitor verá patos, porcos, cavalos, vacas e todo um zoológico no olho do furacão de uma pandemia zumbi. A opção pelo antropomorfismo foi uma forma de autoincentivo do autor.
“Acho que desenhar quadrinhos é uma atividade muito entediante, então começo a inventar coisas para me divertir um pouco”, disse. “Além disso, acho que esse quadrinho tem as cenas mais grotescas que já desenhei. Se não fosse o antropomorfismo, essas imagens teriam outro sentido, se afastando muito do tom de humor que quis imprimir”.
O saldo final é uma HQ definitivamente não recomendada para menores de idade e que desdenha do frisson recente de fãs e artistas em torno da obra de Lovecraft e do tom reverente de outras releituras e interpretações do autor norte-americano, conhecido por seus posicionamentos racistas e homofóbicos.
“Lovecraft virou uma bolha gigante. Vejo edições luxuosas do trabalho dele, adaptações para quadrinhos, cinema. Acho que boa parte desse sucesso se deve ao fato de que as obras dele caíram em domínio público, então todo mundo quer tirar uma lasquinha”, analisou Neco.
“Outro aspecto é que o Lovecraft criou uma metanarrativa que funciona bem. É quase como [J. R. R.] Tolkien, tudo é amarradinho, aquela coisa dos Grandes Antigos, terror cósmico, mitos do Cthulhu. A impressão que tenho é que o jovem artista lê aquilo e quer fazer uma coisa dentro daquele universo. É quase como criar uma aventura de RPG dentro de um sistema. Como eu gosto de falar mal dos colegas, não perco a oportunidade: os resultados são sofríveis”.
Três perguntas para… Aline Lemos, quadrinista e autora de Fogo Fato e Artistas Brasileiras
A convidada da seção que encerra esta 11ª edição da Sarjeta é a quadrinista Aline Lemos, vencedora do Prêmio HQ Mix 2019 na categoria Homenagem pelo álbum Artistas Brasileiras (Editora Miguilim) e autora do recém-lançado Fogo Fato.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
A qualidade e a diversidade do que vem sendo produzido de forma independente. Mesmo com a indústria cultural, em particular a dos livros, passando por grandes dificuldades, temos muita coisa bacana sendo produzida e editada por pequenos selos e editoras ou pelos próprios autores. São quadrinhos de vários gêneros e com estilos muito próprios. Quadrinhos de grupos que não ganhavam visibilidade antigamente, como as mulheres, pessoas LGBT e autores fora do centro-sul. Vejo isso nas várias feiras independentes que estavam fervendo nos últimos anos e que infelizmente estão interrompidas no momento. Não vejo a hora de estar em uma feira de novo.
Como leitora e autora, o que mais a interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Sou bem eclética como autora e leitora. Gosto de quadrinhos que demonstram uma sensibilidade própria do autor. Não importa se é reportagem ou meme, esse ou aquele estilo. Gosto de ver um ponto de vista colocado de forma inteligente, uma ideia bem realizada, um traço que casa com essas duas coisas. Quando estou fazendo, tento pensar em cada quadrinho como um projeto coerente, da ideia inicial à mídia final. Mas, no fim das contas, o importante é ser gostoso de ler.
Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Como muita gente, comecei a ler com Turma da Mônica. Lembro da minha mãe lendo para mim à noite e fazendo as vozes dos personagens. Quando não tinha texto, pedia para ela inventar... Eventualmente, eu mesma passei a inventar e desenhar diálogos nas revistinhas. Ainda tenho algumas rabiscadas e recortadas assim.