Comemorando 25 anos, o grupo Os Satyros concede uma entrevista que nos aproxima de suas muitas experiências, desde o universo teatral até a sua influência na transformação da vida cultural da Praça Roosevelt. Trata também do surgimento do tradicional festival Satyrianas, das ações inclusivas para os vizinhos do Espaço Os Satyros e dos desafios colocados ao seu processo criativo pelos novos recursos tecnológicos.

Observatório: Os Satyros foi criado em 1989 e, logo nos primeiros anos, o grupo recebeu o Troféu APCA de Melhor Ator e Atriz Coadjuvante e a indicação ao Prêmio Mambembe de Melhor Texto, assim como assumiu a direção do Teatro da Bela Vista e definiu a própria linha de pesquisa. Em paralelo, no cenário cultural nacional, houve a extinção do Ministério da Cultura pelo presidente Fernando Collor e foi instituído o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Essas mudanças políticas afetaram de alguma forma as atividades da companhia?

Os Satyros surgiu em um momento dificílimo da sociedade brasileira, no qual a cultura tinha sido condenada praticamente à extinção. Fazer teatro, ainda mais um teatro de investigação como o nosso, era uma temeridade, diante de políticas públicas para cultura inexistentes, inflação galopante e um despertar artístico trôpego diante de mais de duas décadas de ditadura militar. O impacto dessa realidade sobre o nosso trabalho foi imediato. Havia uma urgência em discutir o novo Brasil que surgia sob Collor, um país ainda a se descobrir. Apesar da paixão, ou talvez justamente por causa dela, enfrentamos em nossas produções muitas dificuldades financeiras. Para nós, naquele momento, fazer teatro não era uma opção, mas uma necessidade inexorável. A saída do Brasil tornou-se inevitável e partimos poucos meses antes dos caras-pintadas e do processo de impeachment de Collor. Assim como naquele período, hoje o teatro para Os Satyros está além das condições circunstanciais. Fazer arte é a única forma pela qual conseguimos dialogar com a sociedade. É nesse diálogo que encontramos nossa força e paixão.

Observatório: Com o espetáculo Saló, Salomé (1991), que ficou em cartaz por um ano em São Paulo, a companhia foi convidada a representar o Brasil em alguns festivais de teatro europeus: o Festival Internacional de Teatro de Expressões Ibérica (Fitei), em Portugal, e o Festival Castillo de Niebla, na Espanha. Nasceu, dessa forma, a sede em Lisboa e, em 1997, o grupo foi convidado a desenvolver trabalhos para a instituição alemã Interkunst, com atuação não limitada às cidades de seu país nativo. Essa experiência internacional teve impacto no modelo de gestão que vocês implantaram quando abriram o espaço na Praça Roosevelt?

Ao sairmos do Brasil, trilhamos muitos caminhos com o nosso trabalho no exterior. Conhecemos outras culturas e convivemos com artistas dos mais variados países. Entendemos também que a arte não pode ter fronteiras e que podíamos ser entendidos em lugares tão distintos quanto a Escócia e a Ucrânia. Os anos passados em Lisboa também nos ensinaram a descobrir as formas de fazer nossa arte e sobreviver sem nos corromper, e certamente esse aprendizado não foi dos mais fáceis. Lisboa nos mostrou que éramos capazes de trabalhar na adversidade e construir novos mundos, antes inexistentes. A experiência alemã nos trouxe uma ousadia formal e a percepção de que o que mais importa em nosso trabalho é sua relação direta com a sociedade. Quando chegamos à Praça Roosevelt, já tínhamos trabalhado em muitos países, mas sabíamos que nosso lugar era São Paulo. Voltamos para a Pauliceia, certos de que era a nossa casa. E que poderíamos usar tudo o que aprendemos nas nossas andanças pelo mundo para dialogar com a cidade do nosso coração.

Observatório: Por volta dos anos 2000 Os Satyros inaugurou sua sede na Praça Roosevelt. Quais foram os principais desafios enfrentados por parte do grupo diante da realidade local nesse momento?

Quando chegamos à Praça Roosevelt, encontramos um quadro desolador. Uma região dominada pelo tráfico, pela prostituição de travestis, transexuais e adolescentes e pela alta criminalidade. Fomos ameaçados diversas vezes pelos traficantes que controlavam a calçada em frente ao nosso teatro, a ponto de ameaçarem fazer uma chacina na nossa porta. Alguns jornalistas receavam vir ao nosso espaço, pois temiam a praça. Tudo isso aconteceu há pouco mais de dez anos. Foram dias difíceis, mas que sempre enfrentamos com a mesma garra dos tempos na Europa: confiávamos no poder da arte, nossa e de outros amigos que chegaram depois, para transformar tudo aquilo. É incrível imaginar o quadro de horror do início de 2000 quando se olha para a Praça Roosevelt hoje, um ponto turístico e cultural da maior metrópole no país.

Observatório: A Satyrianas é um evento anual que acontece no início da primavera, conta com uma programação de 78 horas ininterruptas com atividades culturais que dialoga com todas as expressões artísticas e é realizado na Praça Roosevelt, com acesso livre a todos os públicos. Em sua última edição, teve a participação de mais de mil artistas, ofereceu 300 atrações e alcançou um público de, aproximadamente, 40 mil espectadores. A que vocês atribuem essa formação de público?

A ideia das Satyrianas, desde a sua primeira edição, realizada em 1991 (quando ainda não tínhamos saído do Brasil), era fazer uma festa dos artistas para a cidade. Durante quatro dias, queríamos oferecer aos moradores acesso gratuito ao teatro que fazíamos. As Satyrianas foram retomadas com a chegada à Praça, e posteriormente outros artistas amigos foram aderindo à festa, chegando a números que nunca poderíamos imaginar. Até hoje, a festa das Satyrianas é feita sem grandes verbas, baseada fundamentalmente no tesão de fazer teatro para a cidade, e hoje atrai artistas e público de outras regiões do país e do exterior.

Observatório: Como a companhia trabalha a questão da preservação da sua memória, das pesquisas que foram e são realizadas para a construção das peças?

Estamos o tempo todo absorvendo nosso entorno. Para nós, é fundamental a nossa contaminação pelo que vemos, vivemos, ouvimos e sentimos. As travestis e os traficantes influenciaram diretamente muitas das nossas obras teatrais mais importantes, tanto nas forma quanto no conteúdo. Pulsamos com a vida ao redor, tanto física quanto digital. Entrevistas [em pessoa] são partes importantes de muito do que construímos. Por outro lado, muito das pesquisas recentes acontece no mundo digital. Entendemos que o mundo físico que vivemos é [apenas] parte da experiência do mundo contemporâneo, visto que há um plano digital que vivenciamos na internet, nos telefones celulares e em outras mídias. Tentamos preservar nossa memória em todos esses meios, de forma a mantê-la sempre viva.

Observatório: A peça Pessoas Perfeitas, criada a partir da observação da vida de moradores do centro de São Paulo e de entrevistas realizadas com eles, está atualmente em cartaz no espaço Os Satyros. O valor do ingresso aos moradores da Praça Roosevelt é mais barato do que as demais entradas. Essa diferenciação está vinculada com o enredo da peça?

Desde a nossa chegada à praça, buscamos manter o contato com a comunidade em que estamos inseridos. Por isso, os moradores da região pagam um valor simbólico pela entrada, R$ 5, isso desde a inauguração do espaço, em dezembro de 2000. No início, os moradores eram as travestis e os michês, e tínhamos um público que se reconhecia no palco de forma imediata. Posteriormente, a classe média ocupou os apartamentos da Praça e novas histórias passaram a ser contadas. Eles nos inspiram e para nós é um privilégio tê-los na plateia. Sua opinião é tão importante quanto a do crítico mais exigente.

Observatório: Atualmente o Ministério da Cultura aprovou o Vale-Cultura. Vocês já conseguem perceber se houve um aumento no público que passou a frequentar as peças utilizando esse benefício?

Ainda não temos informações sobre isso, pois acabamos de aderir ao benefício. Dentro de alguns meses poderemos falar a respeito. De qualquer forma, é uma iniciativa bastante importante, pois ela passa para o cidadão a decisão sobre o que ele pode fruir do ponto de vista da cultura. É uma iniciativa que, aliada a outros mecanismos de financiamento cultural, pode viabilizar novos públicos para o teatro.

Observatório: Ivam Cabral, um dos fundadores de Os Satyros, é também diretor executivo da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. Contem sobre o funcionamento dessa instituição.

A SP Escola de Teatro, desde sua inauguração, em 2010, trabalha com profissionais que atuam no mercado. Assim, seus quadros artísticos – dos coordenadores aos formadores, passando pelos colaboradores – são ocupados não só por atores, mas por profissionais de todas as áreas do teatro. Dividida em vários projetos, a escola tem sediado várias companhias que a procuram. Estrearam ali vários espetáculos importantes da cena paulistana como Recusa, da Cia. Balagan, de Maria Thais; Não Vejo Moscou da Janela do Meu Quarto, da lasnoias & cia, de Silvana Garcia; e várias montagens do autor e diretor amazonense Francisco Carlos, só para citar três exemplos.

Observatório: Diante das novas tecnologias, da facilidade de acesso à informação, de novas mídias digitais, quais são os desafios e expectativas no processo criativo de Os Satyros, de modo a continuar fazendo peças e atraindo um público cada vez maior?

Temos desenvolvido o Teatro Expandido nos últimos anos. O conceito básico é o de que vivemos um novo momento da humanidade, em que a revolução tecnológica nos leva a fruir a vida de forma inédita. Para o Teatro Expandido, não podemos mais pensar no amor, na morte, no corpo, na identidade e em todos os outros temas fundamentais nas formas que pensávamos. Sabemos, portanto, que a tecnologia mudou a experiência humana. No entanto, e isso é o mais curioso, é justamente por isso que o teatro se torna ainda mais fundamental nos dias de hoje. Corpos humanos fazendo arte diante de outros corpos humanos, numa experiência física e única. Além disso, começamos a explorar o cinema como forma de expressão da nossa arte, com o longa de ficção que estamos estreando, Hipóteses para o Amor e a Verdade. Com toda a revolução tecnológica, houve a democratização de acesso à produção cinematográfica. E acreditamos que podemos fazer muita arte ainda através da sétima arte, agora em formato digital.

Observatório: Em  30 de setembro de 2014, foi divulgado que o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) aprovou a proposta de registro como patrimônio imaterial de 22 teatros independentes da cidade. O Espaço de Os Satyros está entre eles. No que afetará, em termos gerenciais e financeiros, esse registro junto ao Conpresp?

Tudo isso aponta para um amadurecimento da sociedade brasileira. Os teatros independentes são agentes importantes no processo urbano. Em especial na cidade de São Paulo, onde a falta de uma infraestrutura para o lazer torna a cidade um espaço áspero e brutal para a convivência humana. Ao ter sua relevância reconhecida, os teatros independentes podem ser reconhecidos em seu direito de ter um apoio financeiro que viabilize uma gestão de longo prazo aperfeiçoada, oferecendo uma programação cultural rica e diversificada ao cidadão. Tudo isso pode levar o paulistano a pensar o lazer fora dos shopping centers e das rodovias.