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capa do relatório "The Future 100: Trends and Change to Watch in 2022" 

 

por Eduardo Carvalho

Ao longo da minha jornada profissional, ouvi algumas vezes que é sempre importante ter um – e apenas um – pessimista em um grupo de trabalho para nos fazer refletir sobre nossas decisões. Às vezes, o tal pessimista nos faz sentir certa raivinha, mas sua função contribui ao longo do processo. Percebi, com o passar dos anos, que vinha me tornando o pessimista da turma, fato acentuado pela pandemia de covid-19.

Depois de quase dois anos convivendo com o luto, a ansiedade e a incerteza, tenho aprendido que uma visão otimista dos fatos nos força a seguir adiante. É um processo lento, muitas vezes doloroso, mas que me deixa contente quando percebo que está mais fácil enxergar os vestígios positivos no lugar do famigerado copo vazio.

E isso tem se tornado uma tendência – pelo menos é o que sugere um relatório elaborado pela consultoria estadunidense Wunderman Thompson, citando que, em 2022, diferentes empresas e instituições buscam explorar temas otimistas em suas ações para encorajar a diversão, a criatividade e o bem-estar mental do público.

O documento, com percepções para este ano em setores como cultura, tecnologia e inovação, dialoga com práticas já implementadas em museus e instituições culturais do exterior, as quais trabalham para melhorar a autoestima da audiência com programações ou intervenções urbanas que propõem soluções, mesmo em meio aos efeitos de uma pandemia ainda sem data para terminar.

Destaco alguns dos principais tópicos do relatório, ressaltando também outros assuntos que precisam se tornar relevantes para os profissionais da economia criativa: a criação de um debate mais relevante sobre soluções para a emergência climática e maneiras de promover narrativas que possam gerar maior engajamento do público e um chamado à ação.

Novas sensações

Segundo o relatório, existe um “apetite” da audiência por ações ligadas a sensações de admiração, maravilhamento, inspiração e criatividade. Muitos buscam em visitas a exposições a sensação de alívio, com um toque de entretenimento – principalmente após a vivência da imprevisibilidade nos últimos anos. Por isso, de acordo com a Wunderman Thompson, espaços que mesclam experiências virtuais e físicas são uma oportunidade de fisgar essa audiência.

No entanto, vale lembrar a importância do elemento da transformação ao apresentar uma narrativa ao público. Joseph Pine e James Gilmore, autores do conceito de “economia da experiência”, estão aí para nos lembrar que um storytelling que convida à ação e à transformação propicia que a visita não vire apenas uma foto de Instagram ou uma postagem no TikTok, mas seja palco de reflexão e debate além das paredes dos espaços criativos.

Áreas de bem-estar emocional

Já não é novidade que as visitas a museus e exposições se tornaram parte de tratamentos médicos para o bem-estar mental em alguns países. Agora, porém, a tendência é a construção de espaços públicos exclusivos para essa finalidade. Na Espanha, por exemplo, dentro de uma instituição cultural foi criada a “Sala do Choro” (La Lloreria, em espanhol), que permite visualizações artísticas ligadas à saúde mental e bane tabus sobre a discussão relacionada a doenças como a depressão.

Narrativas por uma reconexão

Também está entre as tendências o desenvolvimento de experiências imersivas que abordam temas leves – mas com viés científico – ou proporcionam, em grandes centros urbanos, maneiras de se reconectar com a natureza. O Wellcome Colection, espaço cultural construído no centro de Londres, no Reino Unido, criou em 2021 uma temporada de exposições chamada “Na felicidade”, em que apresentou as mostras temáticas “Alegria” e “Tranquilidade”, oferecendo uma sinergia entre arte e ciência. A instituição também criou espaço para “banhos de floresta”, seções com imagens e sons da natureza, contribuindo para um processo de desaceleração da comunidade em meio a momentos agitados do dia a dia.

Outro exemplo vem da Galeria de Arte de Manchester, também no Reino Unido, que abriu uma grande mostra com obras de britânicos comuns realizadas durante a pandemia, em um projeto idealizado pelo artista Greyson Perry. Ao longo de 2020 e 2021, durante os períodos de isolamento, Perry usou diferentes meios de comunicação para incentivar a população a celebrar a criatividade. O resultado foi a criação de mais de 10 mil obras de arte, das mais diversas formas, e parte delas foi reunida em uma exposição, passando a forte mensagem de como a arte tem poder curativo.

Microaventuras e turismo de conhecimento

Com as restrições impostas pela pandemia a viagens mais duradouras ou mesmo para localidades mais distantes, viagens de curta duração a localidades não tão conhecidas ou pouco exploradas turisticamente se tornaram uma sensação. Centros culturais, museus e eventos sazonais precisam aproveitar este momento e divulgar suas ações. Além disso, locais remotos que costumam receber poucos visitantes estão entre os mais buscados como forma de recarregar energias e cuidar do bem-estar mental.

Ainda se tratando de passeios e viagens, experiências temáticas imersivas também são consideradas tendências para este ano. Viagens acompanhadas de especialistas em história, música, astronomia, gastronomia e outros temas são uma oportunidade de conectar a paixão pela viagem com a busca por mais conhecimento.

Realidade virtual como terapia medicinal

Nascida na indústria dos games e incorporada a diferentes experiências audiovisuais e expositivas, a realidade virtual tem se destacado, ainda, como tratamento médico para condições como estresse pós-traumático, déficit de atenção e hiperatividade. Nos Estados Unidos, em novembro passado, a agência reguladora de medicamentos (FDA) autorizou o uso de games em realidade virtual no tratamento de dores crônicas nas costas, por exemplo – o dispositivo reeduca o cérebro em relação a dores, oferecendo exercícios de atenção plena e relaxamento. Em suma, o que se nota aqui é que o conteúdo digital se mostra, também, um potencial agente curativo.

Uma nova era digital

Para a Wunderman Thompson, a disputa de empresas pela conquista do metaverso, tecnologia imersiva que integra o mundo real e o mundo virtual, deverá ser tão intensa como foi a corrida espacial, na década de 1960, quando os Estados Unidos e a então União Soviética disputavam a liderança no desenvolvimento de tecnologias.

Esse espaço virtual compartilhado, que pode ser acessado com o suporte de óculos especiais e outros equipamentos, é foco de debate intenso – mas ainda restrito, principalmente em um mundo onde, de acordo com as Nações Unidas, 3 bilhões de pessoas nunca tiveram acesso à internet. Ainda assim, o metaverso tem oferecido a chance de criar uma vida paralela à realidade, com marcas aproveitando para se lançar no novo universo, além de uma abertura massiva de postos de trabalho voltados para o desenvolvimento de “bens virtuais”.

Alguns museus mundo afora já se aventuram nesse setor: no Brasil, o Museu do Amanhã, por exemplo, lançou, em parceria com a Miami Dade College, dos Estados Unidos, a experiência imersiva Amazônia. Por meio da realidade virtual, quem visita a instituição no Rio de Janeiro tem a oportunidade de se colocar no lugar de um indígena que vive na Floresta Amazônica, entendendo a importância de manter a floresta em pé para a proteção dos povos originários e de seus saberes.

Já o mercado de NFTs (non-fungible token, ou token não fungível, em tradução livre) é um exemplo da evolução do mundo paralelo digital. A sigla é uma espécie de selo de autenticidade para itens digitais, entre eles obras de arte dos mais diversos tipos e que chegam a valer milhões. Ainda que seja algo nebuloso para a maior parte da população, o NFT é similar ao mercado de coleção de arte, em que uma única pessoa pode ser dona de determinado objeto – seja ele físico ou existente apenas em uma versão virtual. Ainda há muito para descobrir sobre esse tema ao longo de 2022.

Emergência climática em pauta

Apesar de um metaverso que, em tese, não apresenta problemas ou desigualdades sociais, no mundo real a emergência climática continua se intensificando, e as responsabilidades precisam ser compartilhadas também pelo setor de artes e cultura. Como agentes culturais globais podem contribuir nessa questão? Existem algumas alternativas, entre elas a necessidade de gerar maior engajamento entre a audiência e as exposições apresentadas, além de repensar o uso de materiais expositivos, evitando o descarte imediato.

Maior proximidade com o visitante

Muitas vezes, mesmo que o trabalho apresentado tenha como mensagem principal a emergência climática ou o impacto humano no ambiente, o público não percebe que a conversa é com ele. Conectar nossa narrativa a exemplos cotidianos contribui para uma maior sensibilização da audiência com o conteúdo. Precisamos humanizar nossas mensagens, usando a empatia como matéria-prima. É eficaz chamar o visitante para a ação, tornando-o parte da solução, tirando-o da zona de conforto. O que precisamos evitar, no entanto, é a responsabilização do indivíduo pelo caos em que vivemos.

Mudança de padrões estéticos

Outro ponto bastante importante é sobre a concepção das exposições. Há ações muito interessantes ocorrendo em Paris e Manchester, por exemplo, em relação ao uso de materiais aplicados em exibições. Na capital francesa, os setores culturais se organizaram para repensar o emprego do plástico na cenografia, chamando a ciência para o debate: há pesquisas de ao menos 13 possíveis substitutos que podem ser usados em exposições.

Além disso, foi implementado um projeto de economia solidária – liderado pela organização La Resérve des Arts – que coleta sobras das exposições e as oferece a 10% do valor original a associados. Segundo a empresa, que possui imensos galpões no país, 90% de tudo que chega é revendido, fomentando a sustentabilidade no setor cultural.

De volta ao Reino Unido, em Manchester, o diálogo entre instituições culturais e o poder público sobre o impacto ambiental do setor de entretenimento é intenso, e vem gerando resultados positivos. Há museus, por exemplo, que têm repensado a itinerância de exposições, podendo reduzir a quantidade de remontagens ou mesmo não as realizar em outros locais como forma de mitigar as emissões provenientes da logística – ainda que isso afete o orçamento da instituição.

O uso de tecnologias também é uma alternativa para diminuir materiais cenográficos. Projetores, telas e outros equipamentos de baixo consumo energético podem ser reaplicados em mais de uma exposição. Por isso, vale a pena refletir sobre o desenvolvimento de novos padrões estéticos de experiências – e claro, ouvir a opinião da audiência sobre isso; afinal, tudo que criamos é para o nosso público.

Vivemos um período com muitos desafios. Diversos locais têm enfrentado obstáculos para manter sua programação com qualidade e atrair o público, que, aos poucos, se sente mais seguro para sair de casa. A colaboração entre instituições será um fator determinante para fortalecer o setor cultural neste momento.

Termino este texto relembrando que, após a Segunda Guerra Mundial, se chegou a um consenso de que, para curar os traumas e as feridas da sociedade, o investimento em artes e cultura foi uma das soluções encontradas por diversos governos. Estamos novamente num “pós-guerra”, desta vez contra um vírus. Acrescento a este pensamento a necessidade de que, para prevenir novas feridas e acontecimentos, nosso setor cultural e criativo é um dos melhores meios para compartilhar mensagens poderosas de transformação na sociedade. É chegada a hora. Vamos juntos?

Eduardo Carvalho, curador independente, consultor e jornalista, é mestre em gestão da economia criativa pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e bolsista do programa de lideranças culturais Chevening Clore Leadership, do Reino Unido. Foi curador-assistente do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, onde liderou a criação de exposições e experiências que envolvem ciência, arte e tecnologia. Entre seus trabalhos mais recentes estão as exposições For those who are to come, aberta na Conferência das Nações Unidas, a COP26, em Glasgow (Escócia), e Fruturos – tempos amazônicos, em cartaz desde dezembro no Museu do Amanhã.

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