por Daniel Munduruku

Como fiz em meu texto anterior, quero refletir sobre os equívocos que cercam a palavra “índio”. Faço uma provocação e tenho certeza de que muitas pessoas, especialmente professores, ficam “com a pulga atrás da orelha” – quando isso acontece, alcanço meu objetivo. A inquietação, afinal, é já um princípio de mudança. Incomodar-se com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo. É fundamental que todo educador saiba que sua principal atitude deve ser sempre como a de um rio em movimento. Água parada apodrece e perde seu encanto, afastando a vida de seu leito. O educador tem que estar sempre em processo de aprendizado para que possa cumprir sua tarefa de educar para a liberdade.

A palavra “índio” evidencia, às vezes, um quê de inocência por parte de quem a usa. Mas há quem a utilize conscientemente, sabendo que se trata de uma atitude política. No início dos anos 1970, o movimento indígena empregou o termo como uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena entre os povos nativos; eles eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais, cada um lutando por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a se encontrar, durante as famosas Assembleias Indígenas – patrocinadas pela igreja católica, através do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) –, é que as lideranças passaram a ter clareza de que as questões de seus respectivos grupos eram comuns a todos. A partir de então, o termo “índio” passou por uma interessante ressignificação política. Notem, no entanto, que foi um termo usado pelos indígenas em sua relação política com o Estado brasileiro, e cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional – quando muito, membros de diferentes etnias lançavam mão da palavra “parente” para se referirem uns aos outros.

Aqui caberia outra reflexão, que já foi feita em alguns trabalhos anteriores, nos quais discorri sobre a compreensão indígena da natureza. Devo deixar claro que o termo “parente” é usado pelos indígenas para se referir a todos os seres, humanos ou não. Chamar alguém de parente é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par + ente) ligadas à ideia de que dois ou mais seres se juntam numa rede consanguínea. Do ponto de vista indígena, isso vai além da consanguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres – todos os entes – numa mesma teia. Somente nesse contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa.

Até aqui, tenho usado outras palavras para me referir aos povos ancestrais. Ora uso “nativo”, ora “indígena”. Qual seria a certa? Ambas estão corretas quando a ideia é indicar uma pessoa pertencente a um povo ancestral. Agora, por incrível que possa parecer, não há relação direta entre “índio” e “indígena”, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta uma olhadela num bom dicionário que logo se perceberá que há variações numa e noutra palavra. No duro mesmo, os dicionários têm alguma dificuldade para definir o termo “índio” – quando muito, dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição, e sim um apelido – e apelidos são dados àqueles que parecem ser diferentes de nós ou ter alguma deficiência que pensamos não ter. Assim, vemos que não há conceitos relativos ao termo “índio”, apenas preconceitos: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre... Foi carregando essas visões equivocadas que a palavra chegou aos nossos dias.

Por outro lado, o termo “indígena” significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, “original do lugar”. Nesse sentido, sou um indígena Munduruku, e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica, com todos os aspectos positivos e negativos que essa tradição carrega – e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de tratar alguém, pois empobrece sua experiência de humanidade; no caso, desqualifica o estilo de vida dos diversos povos indígenas, e isso não é justo ou saudável.


Trecho da fala realizada por Daniel Munduruku em uma das mesas da terceira edição do Mekukradjá – Círculo de Saberes, série de debates apresentada pelo Itaú Cultural em agosto de 2018

>> Acesse o mapeamento dos povos indígenas que já participaram do Mekukradjá

Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é “tribo”. É comum, por exemplo, as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é a sua tribo? Sei que a questão só vai ser resolvida mediante muita explicação, ao longo de muito tempo. Daí a importância da Lei nº 11.645/2008 no sentido de fazer chegar uma nova versão do termo na cabeça dos estudantes brasileiros. Mas, afinal, o que tem de errado com ele? Respondo: a antiga ideia de que nossos povos são dependentes de outro, maior. A palavra “tribo” está inserida na noção de que somos pequenos grupos que, incapazes de viver sem a intervenção do Estado, se encontram sob o domínio de um senhor, ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para povos tão gloriosos que deveriam ser tratados como nações, uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do Estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que os grupos ao menos fossem referidos como povos, cujos representantes são embaixadores de suas comunidades.

“Povo”, esse é o termo que deveria ser usado. Um povo tem como característica suas independências política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e, ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo”, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e que queremos estar a serviço do Brasil – e não ser considerados um estorvo para o desenvolvimento nacional. Pensar assim é alimentar o preconceito.

Por fim: os “índios” são brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta? Ou seja: serão os brasileiros “índios”? Será que a ordem dos fatores altera o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não ser, ou entre o não ser e o ser. E, nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

 

Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro, autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles, o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Tolerância (Unesco). É graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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