por Zema Ribeiro
Em 1777 o Tratado de Santo Idelfonso, menos famoso que o de Tordesilhas, também assinado entre os reinos de Portugal e Espanha, tornou uma zona do Rio Grande do Sul uma imensa terra de ninguém. Portanto, terra de todo mundo. Eram os chamados Campos Neutrais, que séculos depois dão título ao novo disco do gaúcho Vitor Ramil, o 11o de uma carreira bastante coerente, iniciada aos 18 anos, quando o irmão mais novo de Kleiton e Kledir lançou Estrela, Estrela (1981).
Em Campos Neutrais (Satolep, 2017), Ramil (violões e voz) é acompanhado pelo argentino Santiago Vazquez (percussão) e pelos metais do Quinteto Porto Alegre, formado por Elieser Fernandes Ribeiro (trompete), Tiago Linck (trompete), Nadabe Tomás (trompa), José Milton Vieira (trombone) e Wilthon Matos (tuba), com arranjos de metais de Vagner Cunha e participações pontuais de Carlos Moscardini (violão) e Felipe Zancanaro (guitarras elétricas).
É o primeiro disco que Ramil gravou em sua terra natal. “Considero o mais bem produzido, tocado, cantado, gravado etc. A unidade é marcante no resultado. Tudo soa muito coeso, os arranjos, as performances”, revela em entrevista à coluna Emaranhado. É também o disco em que ele mais se abre a parceiros, após délibáb (2010) – dedicado aos poemas do argentino Jorge Luis Borges e do gaúcho João da Cunha Vargas – e o revisionista Foi no Mês que Vem (2013).
A exemplo do disco duplo anterior, Campos Neutrais tem um songbook, que pode ser adquirido separadamente. “No meu caso, o songbook se mostrou de extrema importância, porque poucos conseguiam tocar as minhas músicas. Meus acordes em geral não são convencionais, e ainda uso afinações preparadas. Muitas vezes, tocar uma música minha com os acordes simplificados fere a essência da composição de um modo que não parece ser a mesma música”, diz Ramil. “Depois dos songbooks tenho ouvido muita gente tocar superbem as minhas canções, mesmo que essas versões incorporem novidades.”
Graças às parcerias, o novo trabalho é também seu disco mais, digamos, ensolarado, embora o autor de A Estética do Frio (Satolep Livros, 2004) negue essa “oposição frio-calor”. “A estética do frio, em última instância, trata não de tentar estabelecer um conflito, mas de afirmar o sul brasileiro através da imagem do frio, do frio tratado como símbolo de um lugar, do nosso clima de estações bem definidas (afinal de contas, o Brasil, que se vê como 'tropical', nos associa ao frio), e como elemento de aproximação do Sul do Brasil com o Uruguai e a Argentina”, explica. “Quando falo em frio, não estou defendendo uma racionalidade ou uma ausência de emoção. Longe disso. Falar em rigor, por exemplo, não é falar em rigidez. Há rigor em João Gilberto, há rigor em Elomar e em João Cabral.”
Sobre as parcerias, ele continua: “Essas parcerias foram acontecendo naturalmente ao longo do tempo. Com o Zeca [Baleiro, maranhense, parceiro em 'Labirinto'] já compus umas três músicas; com o Chico [César, paraibano, parceiro em 'Olho d'Água, Água d’Olho', gravada com a participação especial do próprio Chico], umas cinco. Mas são as primeiras colaborações nossas gravadas. Gosto muito do que conseguimos fazer juntos. Com a Angélica [Freitas, poeta pelotense, parceira em 'Stradivarius'] é um pouco diferente. Venho musicando a sua obra com o objetivo de gravar um disco dedicado à poesia dela, que é sensacional. O poema do Joãozinho [Gomes, paraense, parceiro em 'Contraposto', gravada com a participação especial de Zeca Baleiro] musiquei depois de estar com ele em Macapá, e a canção nasceu pedindo tambores, aqueles tambores melancólicos do marabaixo*. António Botto [poeta português falecido no Rio de Janeiro em 1959], quem diria, me fez compor um samba de corte clássico, 'Se Eu Fosse Alguém (Cantiga)', interpretado a cappella pela sobrinha Gutcha. É o inesperado das colaborações. Todas essas enriqueceram muito o disco e, de certa forma, justificaram a ideia dos campos neutrais como conceito do trabalho”.
Entre as 15 composições inéditas, a Campos Neutrais comparecem também as influências confessas de Beatles e Bob Dylan. No caso do quarteto de Liverpool, a citação explícita a "Strawberry Fields Forever", que aparece no título de "Satolep Fields Forever", e outra faixa, "Angel Station", composta em Londres. Sobre o bardo de Duluth, o retorno a Desire (1976), álbum de Dylan favorito de Ramil – que, em Tango (1987), já havia transformado “Joey” em “Joquim” e aqui transforma “Sara” (então esposa de Dylan) em “Ana” (esposa de Ramil).
Indago-lhe sobre a sensação de ser um elo da genealogia musical que inclui, além de seus irmãos, o filho Ian e a sobrinha Gutcha. “É uma sensação muito boa, de toda a vida. Não sei como seria viver numa casa sem 'muita' música. Estamos montando agora um show em família em homenagem à minha mãe, Dalva, de 92 anos. Vão estar todos os que citaste acima, mais o Thiago Ramil, irmão da Gutcha, e o João Ramil, filho do Kledir”, diz ele. “Fui muito influenciado pelos meus irmãos e adoro o que estão fazendo Ian, Gutcha, Thiago e João. Quero envelhecer vendo a gurizada tocando à minha volta.”
*Manifestação folclórica amapaense realizada desde a Páscoa até o primeiro domingo após o Corpus Christi, dividida em eventos sagrados e profanos e que consiste em homenagear o Divino Espírito Santo.