por Ivana Moura e Pollyanna Diniz

 

Parecia efeito de cinema de Hollywood. No meio da tarde, o céu escureceu, ficou encoberto por nuvens, e fomos surpreendidas pelo "dia que virou noite" na capital paulista, em agosto de 2019. Quem pensava que estaria bem protegido com seu ar-condicionado e que as queimadas na Amazônia eram um problema dos nortistas deve ter sido abalado em suas crenças. Esperamos. As coisas estão muito mais conectadas do que pensamos, e não só pela internet. “O simples bater de asas de uma borboleta no Brasil pode ocasionar um tornado no Texas.” Muitos de nós já ouvimos essa frase, tem a ver com a teoria do caos, segundo a qual alterações aparentemente insignificantes podem provocar mudanças profundas. 

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Em 1 de dezembro de 2019, de acordo com artigo publicado na respeitada revista científica The lancet, foi identificado o surgimento de um vírus que causava uma “pneumonia misteriosa” em Wuhan, capital da província de Hubei, na China. O vírus, chamado de Sars-CoV-2, se espalhou pelo globo. O primeiro caso no Brasil foi registrado em São Paulo, em 26 de fevereiro de 2020. Em 11 de março daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia desse novo coronavírus em todo o planeta. No dia 29 de abril deste ano, em meio a uma onda necropolítica negacionista, atingimos a marca de 400 mil mortos no Brasil. O relatório mais recente da OMS sobre a origem do vírus, divulgado em março deste ano, diz que é “possível ou provável” que o morcego o tenha transmitido ao homem. De alguma maneira, todas as coisas que acontecem estão conectadas. Nada ocorre de maneira isolada.

Não há consenso na comunidade científica mundial, mas alguns pesquisadores atestam que estamos vivendo uma nova era geológica, chamada de antropoceno, que é determinada por transformações ambientais destrutivas causadas pela ação humana. Inventado no ano 2000 pelo químico Paul Crutzen, vencedor do Nobel de Química em 1995, o termo antropoceno aponta que nós, os humanos, somos os agentes das grandes catástrofes que podem afetar o planeta, com os nossos hábitos, o nosso estilo de vida consumista e as nossas configurações de relacionamento com o outro e com a natureza. 

Em entrevista à revista espanhola El cultural, o curador e crítico de arte Nicolas Bourriaud define: “Nesse campo, sigo a versão que os cientistas dão – algo, aliás, que os políticos deveriam fazer com mais frequência. Antropoceno é o nome dado a uma nova era geológica caracterizada pelo impacto das atividades humanas no planeta. É uma situação que afeta todos os componentes da vida, uma projeção de nossas economias no mundo. Uma imagem. Mas, indo além, eu diria que o antropoceno é o nome que damos ao nascimento de uma consciência coletiva”.

Essa consciência de que fala Bourriaud admite que a lógica binária natureza-cultura se tornou insustentável. Aos desafios que o antropoceno nos coloca, uma das respostas está na arte e na sua capacidade de erguer novos regimes de percepção e novas formas de vida. O artigo Experiência estética e antropoceno: políticas do comum para os fins de mundo, escrito por Marina Guzzo e Renzo Taddei, cita os estudos do filósofo francês Jacques Rancière: “Com os embates e os dissensos do Antropoceno, a experiência estética acaba sendo um espaço privilegiado para tensionar posições nos embates políticos. A arte e a política dividem em comum posições e movimentos de corpos, funções das palavras; repartições do visível e do invisível”.

A criação artística pode vir desse lugar, de entender que fazemos parte de um todo, de muitos movimentos coletivos que não têm fronteiras, capazes de alterar percepções individuais que vão reverberando no tecido social.

Produzir no Nordeste

Lançamos, para alguns artistas que trabalham em grupos, uma provocação sobre o que os inspira a fazer arte e se há diferença que essa labuta artística seja gestada no Nordeste do Brasil. “Assim como qualquer artista em qualquer lugar do mundo, criamos a partir do que nos afeta, das coisas que atravessam a nossa vida, com as quais nos relacionamos, para entender a nossa existência inserida dentro de um contexto, como parte de um processo histórico e cultural”, diz Cristiane Crispim, atriz da Cia. Biruta de Teatro, de Petrolina, cidade do sertão pernambucano. 

Mulher jovem aparece sorrindo. Ela usa óculos de grau, camisa estampada e roxa e seus cabelos são pretos e levemente cacheados, na altura dos ombros. Ela usa também brincos compridos e coloridos.
“Assim como qualquer artista em qualquer lugar do mundo, criamos a partir do que nos afeta", diz Cristiane Crispim, da Cia Biruta de Teatro, em Petrolina, Pernambuco (imagem: Rayra)

“Pensamentos revolucionários, progressistas e emancipatórios, por exemplo, atingem a Primavera Árabe e um movimento como o Ocupe Estelita. As coisas estão conectadas. Aí temos que ver como essas coisas nos afetam. Os problemas universais também acontecem dentro do nosso quintal”, comenta Giordano Castro, do Grupo Magiluth, do Recife, Pernambuco. 

Seis homens aparecem sentados em um bar. Eles olham para a foto, estão posando. Atrás dele, a porta do bar está fechada.  Há cadeiras amarelas e um deles está sentado no braço de um sofá preto.
Grupo Magiluth, de Recife, Pernambuco (imagem: Pedro Escobar)

Pensar a coletividade e ambicionar transformações por realidades mais justas são motivações para Márcio Marciano, do grupo Alfenim, de João Pessoa, na Paraíba, que busca dar um testemunho crítico sobre as contradições deste tempo: “O que me inspira é a convicção de que o ser humano, apesar de seus temores, misérias, baixezas e vilanias, é capaz de ser solidário na luta por um mundo mais habitável para todas e todos. Fazer arte é imaginar, no campo simbólico, o ensaio dessa transformação.”

Sete pessoas aparecem de mãos dadas, em roda, em cima de um palco de teatro. A luz está baixa, deixando o ambiente escuro. Algumas pessoas estão sorrindo.
Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa, capital da Paraíba (imagem: Alessandro Potter)

O teatro feito no Nordeste, que rejeita uma paisagem única, vai no caminho de tentar estabelecer novos imaginários no compartilhamento de potências e de afetos. E, nesses confrontos pela quebra de estigmas e na experimentação do dissenso e de novos desenhos de sociabilidade, o Grupo Ninho de Teatro, da cidade do Crato, no Cariri cearense, se coloca disponível para o jogo com o espectador. “Temos na arte esse campo de provocação de possíveis deslocamentos. Um olhar de curiosidade para aquilo que está ou estava naturalizado, do privado ao público, desde as questões íntimas às relações de poder”, conta Edceu Barboza.

Homem é fotografado do alto, de corpo todo. Seu rosto está voltado para cima, seus olhos estão fechados e ele está com a face coberta por purpurina dourada. Há purpurina também no chão, ao redor dele.
Edceu Barboza, ator do grupo Ninho de Teatro (do Crato, Ceará), no processo de criação do espetáculo Cabral (imagem: Elizieldon Dantas)

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama de O perigo da história única – uma de suas palestras publicadas em livro – reduzir a complexidade de uma pessoa e de seu contexto a um só aspecto. É um risco que corremos todos os dias de cair na tentação de congelar algo ou alguém em uma imagem. A construção de narrativas tem a ver com disputa de poder, inclusive quando pensamos no recorte do Nordeste. Como são contadas as histórias sobre o Nordeste? Por quem? Em quais circunstâncias? 

Mergulhar nas origens

Descolonizar o pensamento e descobrir maneiras singulares de narrar está relacionado a um mergulho nas origens, como acredita Samuel Santos, do grupo O Poste Soluções Luminosas, do Recife. O diretor é filho de mãe paraibana com raízes indígenas e de pai natural do interior de Pernambuco. Recifense, morador da periferia da cidade, ao lado de duas artistas pretas, Naná Sodré e Agrinez Melo, Samuel criou um grupo que tem como poética a antropologia teatral, a transculturalidade.

Um homem aparece sentado no meio de duas mulheres. Elas são negras e estão sorrindo. Ambas usam brincos grandes e coloridos. O homem está de camiseta cinza e calça jeans. Ele é grisalho e calvo.
Naná Sodré, Samuel Santos e Agrinez Melo do grupo O Poste Soluções Luminosas, de Recife, Pernambuco (imagem: Arlison Vilas Bôas)

A pesquisa do coletivo está centrada no corpo e no teatro a partir da perspectiva das religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. No Recife, O Poste fundou a primeira Escola de Antropologia Teatral, que tem disciplinas como Capoeira no Jogo do Ator; Tradições da Mata: Cavalo-Marinho e Maracatu de Baque Solto na Construção do Ator; e Dramaturgia dos Orixás. “Toda essa relação imbricada das disciplinas com a cultura preta, nordestina, tem um propósito de ser, o de descolonizar”, reitera. 

Não migrar como decisão política

A decisão de manter um grupo no Nordeste do país quer dizer, muitas vezes, encarar estruturas públicas falhas ou inexistentes relacionadas à formação do artista, ao incentivo à criação e à distribuição dos trabalhos artísticos. Não que nas outras regiões seja necessariamente melhor, cada uma possui suas especificidades e seus problemas. Mas não migrar pode significar um movimento político de resistência.

Foi o que aconteceu com uma geração de artistas do Rio Grande do Norte, incluindo Titina Medeiros, que já foi integrante do Clowns de Shakespeare e hoje faz parte do coletivo Casa de Zoé, de Natal. “Nossa lógica era: precisamos fomentar o teatro no nosso estado para que nossos conterrâneos nos conheçam e conheçam nossas obras. Daquele tempo para cá já se passaram quase 30 anos, e acredito que nossa estratégia foi e continua sendo valiosa. Mas tudo isso só foi possível por causa do teatro de grupo, que nos uniu por uma causa comum”, diz a atriz.

Mulher está sorrindo, usando camiseta regata azul e um colar grande vermelho. Seu cabelo é liso, castanho claro, na altura dos ombros. Ela usa um batom claro.
"Nossa lógica era: precisamos fomentar o teatro no nosso estado para que nossos conterrâneos nos conheçam e conheçam nossas obras", diz Titina Medeiros, da Casa de Zoé, de Natal, Rio Grande do Norte (imagem: Brunno Martins)

Muitos desses coletivos estão na dinâmica de estruturar formas de, se não quebrar, pelo menos causar algumas fissuras nas ideias cristalizadas. O Poste Soluções Luminosas, por exemplo, viajou muito pouco ao Sudeste com as suas peças, mas apresentou Cordel do amor sem fim, uma das suas criações, em 22 cidades ribeirinhas banhadas pelo Rio São Francisco. São outras lógicas de pensamento que encaminham maneiras diferentes de criar, produzir e distribuir. De se posicionar no mundo, tentando impedir que a roda das opressões, a lógica colonialista, vá se multiplicando e atropelando o que vem pela frente.  

Três mulheres aparecem em um palco de teatro, encenando uma peça. Acima delas, muitas luminárias compõem o cenário. Elas usam vestidos longos e coloridos. Uma delas, à esquerda, está com um pilão na mão. A da direita está coberta por um lençol branco.
O espetáculo "Cordel do amor sem fim", do grupo O Poste Soluções Luminosas, já percorreu 22 cidades às margens do rio São Francisco (imagem: Marcelo Lyra)
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Mulher com os cabelos lisos na altura dos ombros está com fone branco no ouvido. Seus cabelos estão pintados de loiro e cor de rosa. Ela usa batom vermelho e uma camisa preta, com bordado na frente.

Todo mundo tem sotaque!

Em seu terceiro texto para o site do Itaú Cultural, as críticas de teatro Ivana Moura e Pollyanna Diniz falam sobre como o sotaque pode virar alvo de exclusão e xenofobia