por Daniel Fagus Kairoz

Peço licença para adentrar este lugar para o qual fui chamado para reverberar em palavras algumas danças e alumbramentos. Peço licença e agradeço a todos os artistas que toparam criar para a mostra de dança do Itaú Cultural, Dança agora, movendo tempos e trajetórias, assim como as palavras que aos poucos vão dançando nas tramas deste texto. Agradeço o convite para este exercício de escuta. Nestas linhas, eu me dedicarei a dar corpo em texto às emanações das danças da primeira semana da mostra.

Antes de tudo, é preciso chamar a atenção para o fato de a mostra estar na sua quarta edição e se propor a privilegiar, na sua curadoria, artistas da dança não restritos ao eixo cultural sudestino – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais –, ampliando nossas referências artísticas e mais ainda nossa perspectiva de dança. Querendo ou não, é no Sudeste que vemos com mais força e consistência um predomínio das estéticas coloniais na dança. Olhar para outros corpos de outras regiões do Brasil nos permite vislumbrar caminhos outros que a dança vem seguindo – caminhos muito férteis, diga-se de passagem, mas que vinham sendo colocados à margem com relação ao pensamento hegemônico da dança cênica, ainda extremamente vinculada a paradigmas europeus e norte-americanos tanto nas suas práticas quanto no seu pensamento teórico e crítico.

Nos últimos dez anos, pudemos ver uma transformação profunda em instituições fundamentais para a manutenção do pensamento colonial, principalmente em universidades públicas e instituições culturais. Não que seja um movimento recente, pelo contrário, é uma luta encampada séculos a fio por pensadores e artistas negros e indígenas, assim como por mulheres e gays, que foram pouco a pouco abrindo caminhos e cultivando um solo que hoje se mostra diverso e exuberante em suas manifestações.

A última década testemunhou o florescimento de outras perspectivas de pensamento dentro dessas instituições, principalmente das perspectivas indígenas e das afrodiaspóricas nas três principais nações – Banto, Jêje e Nagô – que tiveram os seus trazidos à força para o Brasil no período da escravidão. Além disso, coloca-se cada vez mais em evidência a encruzilhada que aqui se abriu a partir dos encontros entre todos esses povos e também os europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Pensar encruzilhada se faz cada vez mais preciso, em contraponto a tentativas anteriores de se pensar certa mestiçagem mais ou menos bem acabada, mais ou menos pacífica.

Nunca podemos perder de vista que, até o início do século XX, o intento declarado do Estado brasileiro era de “branqueamento” de sua população e consequente extermínio de outros modos de vida vinculados às tradições indígenas e afrodiaspóricas. Intento que se adaptou às mudanças das épocas, mas que segue em vigor ainda hoje, mais ou menos dissimulado, dependendo do contexto em que estivermos.

Paradoxalmente, justamente aqueles que até então não podiam pensar e existir nesses espaços a partir da sua própria ancestralidade e do seu próprio corpo trouxeram o vigor necessário para abrir novos caminhos de saída dessa crise. Obviamente, essas instituições estão colhendo muitos bons frutos desse florescimento. É certo que vemos hoje um protagonismo de negros e de indígenas também em lugares de poder de decisão – são, por exemplo, curadores, diretores, doutores, etc. –, algo que até então era raríssimo. É nesse complexo cenário que ecoa a pergunta: estariam essas instituições realmente dispostas a um processo de decolonização de seus fundamentos, estruturas e paradigmas ou apenas seguindo o espírito do tempo como forma de absorver a força desses atores para realizar a manutenção de seu ímpeto colonialista?

Agora, a mostra

Após esse intercurso e colocada a questão acima, podemos voltar nosso olhar para a mostra Dança agora. Primeiramente, é fundamental dizer o quão importante é o evento neste momento, uma vez que coloca em evidência uma das artes com menos espaço em instituições e programações.

Nessa primeira semana, pudemos acompanhar os trabalhos das renomadas artistas Inaicyra Falcão (BA), Dudude Herrmann (MG) e Silvia Moura (CE) abrindo os caminhos da mostra, que seguiu com o artista Kleber Lourenço, pernambucano radicado em São Paulo, e com as parcerias propostas pela curadoria entre os artistas Neemias Santana (BA) e Odacy Oliveira (AM); Eliza Oliver (PE) e Kanzelumuka (SP); e Iara Campos, Íris Campos (PE) e Ewe Lima (PB).

Acompanhamos elaborações, pensamentos e movimentos de corpos que trazem em si e manifestam em suas artes relações com o sagrado, com a espiritualidade e com as suas ancestralidades. Vimos essas manifestações tanto nas criações desses artistas quanto nos seus discursos nos bate-papos que aconteceram após as apresentações.

Inaicyra Falcão

Mulher negra está com fios de lã nas mãos bem abertas, em cima de pedras, de onde se vê o mar. Ela olha para cima e tem um adereço nos cabelos.
Inaicyra Falcão (BA) materializa sua trajetória em fios de lã (imagem: frame de vídeo)

Ela materializa sua trajetória em fios de lã cujas cores vibram a diversidade e a singularidade de cada experiência vivida. Um corpo que reverbera a força da pedra, das ondas, do mar. Que tece seu próprio destino com seus dedos em conversas com os céus. Um corpo que, na sua integridade, ritualiza a vida por meio da dança e do canto, expressões de um mesmo mundo-corpo. Mulher negra cuja contribuição para a dança é imensa e ainda pouco conhecida, mas reverenciada pela comunidade da dança brasileira.

Dudude Herrmann

Ecoa a integridade desse corpo que é dança e canto e que sobre a pedra se faz silêncio, respeito em sua dignidade de ser. Danças que se fazem oração. A mata se apresenta ao redor da sala, contemplando a dança, cantando para o corpo que dança. Podemos vislumbrar aqui alguma possibilidade de o mundo ocidental conviver com a diversidade da mata. A possibilidade de um corpo coreografado pelos movimentos culturais das danças modernas europeias e pós-modernas norte-americanas também ser coreografado pelos encantados que cantam para esse corpo que flui e vive. Mais uma vez a pedra.

Silvia Moura

Um corpo que se faz casa, árvore, um corpo de mulher que se metamorfoseia e incorpora sonhos e pesadelos cotidianos. Casa, corpo, mulher, árvore. Uma árvore que é cortada, uma mãe que faz sua passagem, uma casa que se torna obra viva, uma rua que se torna ameaça, o lixo do mundo industrial que vira mar, luz, música. O plástico e o petróleo materializam a saudade do mar. Cada cômodo da casa materializa um sonho diferente, e essa mulher, dançando, atravessa esses sonhos, essas memórias que, vívidas no corpo, dançam. Quanta memória um corpo suporta? Quantas coisas uma casa pode abrigar? Nessa casa, a decadência do mundo se torna vida. A densidade da memória das coisas se faz dança. Fogueira, coração, mundo.

Kleber Lourenço

Caminhos abertos pelas nossas sabedoras da dança e, mais uma vez, a pedra. Agora a pedra é de fogo, incendeia o corpo de Kleber Lourenço. É pedreira. É escombro. Aqui o mundo ocidental foi tomado pela mata. Ruínas. Uma arquitetura repensada pelos seres da mata. Inscrições rupestres de tempos presentes. Esse corpo de homem coreografado pela pedra insiste contra essas ruínas. Agita-se sobre os escombros. Grita. Parece buscar a todo custo a justiça justa de Xangô. Um homem que nasce das ruínas do Ocidente. Incansável, move-se por essas ruínas, pega fogo. A chuva lhe traz alento. Mas o fogo é forte e a pedreira o chama. Corre, atravessa, foge por outros caminhos, para longe dos escombros. Na pedreira, seu corpo voa entre a mata e o céu. Lago sob montanha, o fogo se acalma e esse homem se encontra com sua força primordial. Escapa das ruínas do mundo. Alegria! Agora a dança flui, sem tanto esforço. Ele se torna senhor de si. Homem sobre pedra. Árvores contra céu.

Neemias Santana e Odacy Oliveira

Homem sobre árvore. Vertigem. Uma música densa suspende o ar, torna-o mais pesado, sua inalação se torna mais difícil, quase insuportável. Fragmentos de corpos. Contrastes entre corpos. Da densidade das metamorfoses de um corpo que se torna árvore à delicadeza de mãos que moldam o invisível, que movem delicadamente aquilo que não se vê. Um saber do mistério das coisas. Dois corpos que não se encontram. Seus corpos dançam danças de naturezas diversas, dois mundos tentam se encruzar e se deparam com a opacidade do vídeo. Uma virtualidade que busca aproximá-los e uma impossibilidade que se impõe. Um vazio tecido entre dois corpos. Os pés que repisam um caminho aberto.

Eliza Oliver e Kanzelumuka

Buscam o encontro. Entre bambuzais e viadutos. À beira-mar. O vermelho conduz os primeiros movimentos, os primeiros passos da caminhada. O vento. Oyá se faz presença. Danças e caminhadas. Uma travessia. O azul e o amarelo se anunciam. O mergulho na água faz do vermelho amarelo. Oxum reina. Coreografa o corpo que se entrega aos seus braços. Pelo caminho aberto, os corpos retomam sua travessia abençoada pelo pano branco de Oxalá. Matreiros, lançam-se ao desafio do encontro. Água e pedra. Cabaça. Akaiá. Útero que possibilitou o encontro entre três irmãs que não se sabiam.

Iara Campos, Íris Campos e Ewe Lima

Como bem disseram elas, com a bênção dos encantados. Mais uma árvore cortada; agora, para evitar a repressão do Estado contra o saber dos juremeiros. A dor de não poder ser quem se é. E a certeza da proteção e do chamado para a retomada. Caboclas da beira do mar. Corpo dança água. Corpo dança folha. A dança reaparece com a força da reza, da encantaria. Mãos que tecem o invisível. A fumaça dos cachimbos que sobe aos céus. No trilho, nas ruas, nos caminhos. Uma dança encantada pela força das matas.

Para além dos modismos

Cabe às instituições culturais não apenas programar as danças, mas também repensar seus modos de atuação a partir dessas danças. Cabe aos diretores das instituições aprender com os artistas da dança a transar mundos, a dançar nas encruzilhadas entre pensamentos.

Por fim, gostaria de apontar uma questão para pensarmos juntos: por quais transformações precisam passar as instituições culturais para que possamos honrar a diversidade artística da dança que se faz no Brasil para além dos modismos passageiros?


Daniel Fagus Kairoz vive e trabalha em São Paulo (SP). É bacharel em comunicação das artes do corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e, desde 2014, coordena o Terreyro Coreográfico, encruzilhada entre coreografia, arquitetura e cosmopolítica em que cria projetos de cultivo da dimensão pública dos espaços das cidades.

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