Depois de visitar o Jazz nos Fundos e a Casa de Francisca para a série de entrevistas sobre casas de shows em São Paulo, o Observatório Itaú Cultural foi à Lapa conversar com o pessoal da Serralheria Espaço Cultural e entender um pouco mais de seu funcionamento e gestão.

Localizada onde antigamente funcionava uma serralheria, daí a origem do nome, a casa é gerida pelos amigos Juliana Cernea, Miguel Salvatore, Amadeu Zoe e Thiago Rodrigues. Os proprietários nos contaram como o local se relaciona com o entorno, como é feita a curadoria e quais são os diferentes projetos propostos.

OBS: Como surgiu a Serralheria e por que vocês decidiram por escolher este espaço no qual vocês se encontram hoje?

Serralheria: A gente fazia parte de um coletivo e desse coletivo surgiu a vontade de ter um espaço, um laboratório que pudesse transformar o que até então era uma brincadeira em algo profissional e que a gente pudesse viver disso. A ideia era apostar nesse laboratório e ter um espaço onde os artistas pudessem vir e criar. Bom então com isso em mente a gente saiu em busca de um espaço que atendesse todas as nossas demandas, além da casa que recebe shows, a gente também tem um estúdio e uma marcenaria que funciona atrás do palco e a gente queria que esses espaços ficassem separados uns dos outros para as pessoas terem liberdade para circular. Essa busca foi um processo difícil que demorou quase um ano e na verdade esse espaço, onde estamos hoje, foi o primeiro espaço que a gente encontrou, aí acabamos circulando e circulando até voltar pra ele e decidir que seria aqui mesmo.

A casa estava deteriorada quando a gente encontrou ela, não tinha eletricidade, não tinha agua, aí nós três, eu, Miguel e Amadeu, que é o núcleo inicial da serralheria, decidimos botar a mão na massa e reformar o espaço. Tivemos a ajuda de um investidor, um amigo nosso que pode nos ajudar e foi importante nesse momento inicial. Esses primeiros anos foram uma luta física, onde nós três além da gestão, também éramos funcionários, fazíamos de tudo e tivemos de fazer um investimento também, mas tivemos um retorno bom. Um retorno capaz de fazer com que a serralheria fosse um projeto sustentável. Já no terceiro ano nós conseguimos participar de um edital de fomento.

E esse edital você se lembra qual foi e como foi essa experiência? Vocês tentaram recorrer a editais em outros momentos?

Esse foi um edital da Funarte chamado Palcos Permanentes. E que foi um divisor de águas em relação a qualidade sonora do nosso projeto, conseguimos equipar a casa do jeito que queríamos. Nosso estúdio teve um ganho de qualidade muito grande e conseguimos também convidar artistas e bandas que talvez não fosse possível chamar sem essa verba do edital. Isso tudo gerou um capital de giro que impulsionou a serralheria nesse momento. Mas essa foi a única vez, nunca tivemos a intenção de contar com os editais para a sobrevivência da casa.

Como funciona a gestão da Serralheria?

A gestão é quase que familiar, meu marido é técnico de som, a gente acaba fazendo bilheteria, temos irmãos e amigos próximos trabalhando aqui com a gente. E pensando em gestão a gente tem uma preocupação em não ser somente entretenimento, atuamos em varias frentes. Fomentamos projetos de ativismo e que a gente acredita, temos essa preocupação de não sermos só diversão. A própria escolha do que toca e do que não toca na Serralheria é um ato político e que passa por essa ideia de gestão. A divulgação funciona legal na base do boca a boca, de uma maneira descentralizada mesmo. Agora que a Folha de São Paulo e grandes mídias tem dado atenção a isso.

Que outras atividades a Serralheria desenvolve além dos shows? Vocês tem algum outro tipo de programação?

Durante o dia temos oficinas de circo e é algo que acaba tendo uma atenção importante na nossa agenda, ocorrem quase todos os dias. Aos finais de semana temos também oficinas de percussão e alugamos a casa também, claro que sempre com uma preocupação de que não fuja do que a Serralheria se propõe, sem fugir do que geralmente entra na nossa programação e da curadoria que a gente faz pra cá.

Já que você tocou no assunto como é feita a curadoria da casa? Conta um pouco pra gente desse processo.

No começo a gente procurava as bandas, tínhamos uma rede bem grande de músicos próximos, geralmente bandas de conhecidos. Mas a Serralheria foi se estabelecendo e os músicos começaram a procurar a gente, até porque existe essa demanda também. Como nós sempre tivemos essa preocupação com a qualidade do som, os músicos que se atentam a isso também acabaram se aproximando. Cada um aqui tem suas preferencias e seus gostos e abrigamos desde punk rock, metal, passando por afrobeat, jazz e samba. Acolhemos muitos gêneros, mas sempre prezando pela qualidade e pela música autoral. Temos essa preocupação em promover a música autoral. Não temos nada contra o cover, entendemos que existe mercado para isso, mas essa não é a proposta da Serralheria. O que queremos é fomentar a criatividade.

Tem alguns projetos que a gente sabe que não vem tanto público, mas a gente faz porque acredita. Gostamos muito de música instrumental e a gente sabe que não existe uma cena para isso. Então tem de existir essa abertura, porque se não isso se perde. Ano passado mesmo tivemos um projeto de improvisação livre, São Paulo faz parte de um circuito mundial de improvisação livre e a Serralheria participou deste circuito recebemos vários artistas estrangeiros. São eventos que sabemos que vêm umas vinte, trinta pessoas, mas fazemos por amor e aí um projeto acaba cobrindo e viabilizando o outro. Agora estamos com um projeto de shows aos domingos que começa cedo e acaba cedo, afinal de contas é domingo e a ideia é discutir a musicalidade afro brasileira do ponto de vista da religiosidade. Então tem um estudo nesse sentido, publicamos textos também no nosso site e a ideia além dos shows onde róla um batuque sensacional é discutir também essa religiosidade.

E como é a relação com os músicos e artistas que se apresentam na Serralheria? Qual a contrapartida para o artista?

Eu acho que a gente caminha lado a lado, do mesmo jeito que os músicos veem a nossa luta para manter o espaço, de manter essa estrutura que está disponível para receber tanta gente eles também vem para assumir esse risco e oferecer a música deles. Geralmente as bandas ficam com 70% da bilheteria aqui na Serralheria, muito raro que seja mais do que isso e menos que isso quase nunca. A capacidade da casa é de 180 pessoas, nunca vendemos mais do que isso para não superlotar a casa. Então de certa forma o artista já sabe o quanto ele pode ganhar, é uma relação mais de caminhar junto mesmo por acreditar no projeto e fomentar a circulação dessas bandas. As bandas precisam de um lugar para se apresentar, mas a gente também precisa do público da banda. Nós estamos localizados na Lapa, não estamos no eixo Vila Madalena – Rua Augusta, então dificilmente alguém está passando por aqui e resolve parar, geralmente as pessoas vem pela banda mesmo.

Qual a relação aqui no bairro e com o entorno? E isso de não estar nesse eixo Vila Madalena - Rua Augusta, isto ajuda ou atrapalha vocês?

No começo isso era uma desvantagem, mas aos poucos essa situação foi mudando. Abriu um poupa tempo aqui perto o que trouxe uma iluminação e nós mesmos trouxemos um pouco de vida pra região, trouxemos uma energia boa para o bairro. Mas temos algumas vantagens também, não tínhamos tanto vizinho reclamando de barulho. Agora depois de cinco anos e meio que estamos aqui é que começa a surgir prédios, esses prédios gourmet e com pessoas gourmet e começa a rolar um pouco disso, do pessoal reclamar do barulho. A gente na verdade até se espantou ficar tanto tempo sem ter nenhum atrito, mas o cara ta lá na propriedade privada dele e tem o direito de reclamar também. Aí é uma questão de negociar e entrar em algum acordo. Mas de uma maneira geral acredito que a gente venceu essa questão da localização, olhando as nossas planilhas o público vem em um crescente. Então não acho que a localidade afaste o público.

E o poder público, qual o posicionamento que a gestão pública tem nesse sentido? Vocês tem algum tipo de apoio? Como é essa relação?

A gente é praticamente descolado do poder público e sente na verdade os empecilhos da gestão pública. Nunca tivemos nenhum apoio e nenhum desapoio, o processo de legalização do espaço foi muito difícil e demorado, não tivemos nenhuma assistência. Durante a virada cultural a gente fecha, o Miguel até chegou a participar como curador na virada ano passado, mas foi na parte de arte e tecnologia. Talvez falte um pouco mais de articulação, esta articulação está até se esboçando mais recentemente e o Miguel tem participado mais ativamente, nesse sentido, aqui pela Serralheria. Porque existe uma cena né? E tem algumas casas que possuem um denominador comum que é a música autoral e essas casas não dependem do poder público. Fora que existe o Ecad né? E precisa se falar do Ecad e precisa se discutir o Ecad. Tudo bem é um órgão privado, mas que tem a legitimação do Estado e é estabelecido por lei. O Ecad fiscaliza as casas e cobra uma taxa absurda, sem qualquer embasamento. A Serralheria se sente explorada e imagino que todas as casas dessa cena passem por isso também. O mais triste é que o argumento é que a taxa existe para fortalecer a música e para que exista uma distribuição para os músicos, mas esse dinheiro não chega nos músicos, não nesses que não possuem grande expressão.

A questão do IPTU é outro debate importante, as casas de cultura estão buscando uma isenção de IPTU e as casas de música em São Paulo estão brigando por isso também. Isso vem dessa articulação que tem rolado, esperamos de certo e que saia a isenção de IPTU para as casas de música também. Ou ao menos a cobrança de uma taxa que seja mais justa, Porque da maneira que está hoje a Serralheria se enquadra na mesma categoria que uma grande casa de shows e um estádio de futebol, isso não faz o menor sentido e precisa ser revisto.

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