Um drama policial na fronteira do real e do ficcional
30/04/2019 - 09:00
por Duanne Ribeiro
Cena do crime: ainda sentado à escrivaninha, a cabeça ferida e inerte sobre a madeira, em meio a canetas, folhas de papel, computador. O quadrinista está morto. Os investigadores veem a situação e depreendem das pistas os possíveis culpados: não alguém comum, de carne e osso (ou talvez de outras qualidades de carne e osso...), mas os próprios personagens criados pelo autor assassinado. Esse é o tipo de mistério que pode acontecer em Meta – Departamento de Crimes Metalinguísticos, do roteirista Marcelo Saravá.
O projeto, apoiado pelo Rumos 2017-2018, enfoca uma polícia secreta que monitora contravenções na fronteira entre o real e o ficcional. O descritivo fornecido por Saravá sugere alguns desses crimes: autores que prostituem seus personagens, indivíduos que se refugiam em desenhos animados para nunca envelhecer... As possibilidades soam numerosas. Definido assim, Meta pode extrair ideias de todo tipo de narrativa, seja dos quadrinhos mesmo, seja de filmes, jogos, teatro, literatura.
Diz Saravá que o trabalho está em fase inicial: “Tem chão pela frente. Estamos começando a desenvolver as artes da HQ. O André Freitas, desenhista, fotografa referências para cada quadro e então desenha em cima, criando assim um resultado bastante realista”. Já as ideias que terminaram por amadurecer no projeto vêm de longe.
A premissa de Meta surgiu em 2010, mas, conta Saravá, “desde os tempos da faculdade eu estudo a sério a metalinguagem”. Entre as obras artísticas que o marcaram nesse sentido estão filmes como Crepúsculo dos Deuses, Cantando na Chuva e Birdman. “Para Meta, especificamente, as minhas referências mais conscientes foram as HQs Mulher-Hulk e Homem-Animal e os filmes Cool World e A Rosa Púrpura do Cairo – cujas tramas poderiam ser casos investigados pela polícia da metalinguagem”.
A principal entre essas referências é Homem-Animal, HQ do roteirista americano Grant Morrison: “Este é, para mim, o zênite da metalinguagem em qualquer mídia”. Morrison, nessa série, assumiu um personagem meio de canto no universo de heróis da DC Comics (que abrange o Super-Homem, o Batman, a Mulher-Maravilha) e o revitalizou. Abordou temas mais adultos e criou histórias que tematizavam a própria forma quadrinhos. Esse autor fez Saravá perceber “a riqueza de trabalhar dramaticamente a metalinguagem – um recurso normalmente utilizado para fins cômicos”. Apesar de haver humor em Meta, o projeto é, segundo ele “essencialmente um drama policial”.
Contudo, Meta não é o primeiro projeto seu em que usa recursos metalinguísticos: “A metalinguagem sempre me agradou e a apliquei aqui e ali, especialmente em algumas tiras sem desenho”, diz, “mas, aqui, ela é a essência da coisa toda”. Outra diferenciação desta produção são os temas. Em projetos como Aos Cuidados de Rafaela e Nua e Crua, há tons próximos aos de Nelson Rodrigues, dramaturgo e escritor, em que é comum se retratar, com crueza, o sexo, o fetiche, a violência. “Meta é muito mais um projeto do eu leitor de quadrinhos de super-heróis do que do eu que fala de desejo e sexo”, afirma Saravá. Esse projeto e os citados “são obras diferentes, para públicos diferentes”.
Saravá comenta por fim que pensa haver “muito território a ser explorado em termos de metalinguagem nos quadrinhos. Meta é só o primeiro álbum de muitos. O conceito permite criar inúmeras histórias, e cada uma pode explorar recursos diferentes da metalinguagem”. E se o quadrinista assassinado no início deste texto fosse o próprio Marcelo Saravá? E se a personagem Rafaela tivesse sido convencida a matá-lo pelo autor desta matéria que você está lendo, apenas para ter a última entrevista com o roteirista, e assim ganhar algum destaque? Pode acontecer.