Projeto Mamulengo Brasileiro busca preservar a memória do teatro popular de bonecos
05/08/2019 - 00:00
por André Bernardo
São muitas as versões para a origem da palavra mamulengo. A mais aceita delas, explica o dramaturgo, cenógrafo e pesquisador Fernando Augusto Gonçalves Santos, associa o teatro popular de bonecos à corruptela da expressão mão molenga. Um dos mais respeitados “mamulengueiros” do Brasil, Fernando se orgulha de dizer que pratica e ama a arte do mamulengo – além de lutar por ela – há mais de 40 anos. Nesse período, apresentou seus espetáculos nas principais capitais do país, excursionou por diversos países, como Estados Unidos, França e Cuba, e realizou um sem-número de cursos, oficinas e ateliês. “Mamulengo é o verdadeiro teatro popular do Nordeste”, define.
A gênese do mamulengo é religiosa. Tudo começou no século XVI, quando os primeiros franciscanos que pisaram em Olinda, a 7 quilômetros do Recife (PE), tiveram a ideia de criar presépios mecanizados para catequizar os habitantes do lugar. Movidos por arames, fios e roldanas, os bonecos da Sagrada Família realizavam pequenos movimentos: Nossa Senhora abria os braços, São José inclinava a cabeça e o Menino Jesus mexia as perninhas. “Isso causou uma grande comoção nos fiéis”, conta Fernando.
Seu encantamento pela arte do mamulengo teve início ainda garoto. Àquela altura, a técnica já tinha migrado do interior das igrejas para as feiras populares. Para desgosto de sua mãe, ele passava horas assistindo às apresentações dos mestres mamulengueiros da época. “Ela reclamava bravamente das expressões chulas e das libertinagens”, recorda.
Na década de 1960, Fernando ingressou no Teatro Popular do Nordeste (TPN), fundado pelo dramaturgo pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976). Um de seus primeiros trabalhos, como assistente de direção, foi o espetáculo Cabeleira Aí Vem, de Sylvio Rabello (1899-1992), em 1970. Cinco anos depois, fundou, em parceria com Nilson de Moura e Luiz Maurício Carvalheira, a companhia Só-Riso. “O riso é a grande arma contra a exploração dos poderosos”, filosofa.
Coautor de espetáculos como Festança no Reino da Mata Verde e Carnaval da Alegria, Fernando admite que um de seus mentores foi Januário de Oliveira (1910-1977), o Mestre Ginu, que ele conheceu em 1969. “Qualquer um pode ser mamulengueiro desde que conheça um mestre que aceite ensiná-lo a modelar e a manipular os bonecos”, explica. Quando fundou o Museu do Mamulengo, em 1994, o primeiro da América Latina dedicado a esse gênero, Fernando deu à instituição o nome de Professor Tiridá – a mais famosa criação de Mestre Ginu. Hoje, o acervo do museu dispõe de 1.200 peças, antigas e contemporâneas. Dessas, 350 estão em exposição.
O projeto Mamulengo Brasileiro, de autoria de Fernando, é sua mais nova empreitada para salvaguardar o teatro popular de bonecos. É dividido em duas etapas: o restauro de 300 peças e a criação de um site bilíngue. “Estou selecionando 300 bonecos de um total de 800. A maioria está infestada de fungos e cupins”, lamenta. Em geral, todo boneco é feito de material perecível, como madeira, tecido e cabelo. Minucioso, o trabalho inclui desinfestação, emassamento e pintura das peças, além da recuperação de figurinos, cabeleiras e adereços. “Muitas vezes, não basta desamassar a cara do boneco; é preciso comprar tecido, envelhecê-lo por processos químicos e trocar seu figurino. É um processo delicado que demanda tempo”, avisa. Por essa razão, ele teme não concluir o projeto no prazo estipulado.
O restauro das peças vai ajudar Fernando na hora de definir os mestres que farão parte do site. Os critérios de seleção, adianta, serão sua importância artística, cultural e histórica. Paralelamente ao trabalho de restauro, vai dar início à criação do site. Nele serão disponibilizados textos sobre o grupo Só-Riso, perfis biográficos dos mestres e imagens dos bonecos restaurados. Fernando não sabe dizer ao certo quantos mamulengueiros existem hoje no país – estima-se que, em atividade, seja algo em torno de 60. Só em Pernambuco, calcula, são oito. Dois dos mais importantes são Zé Divina, de Lagoa de Itaenga, e Zé Lopes, de Glória de Goitá. “Infelizmente, o estado de saúde de Zé Divina, hoje com 85 anos, é delicado. Ele já não consegue mais oferecer o show com as habilidades que o tornaram famoso”, confessa.