por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

Em uma das estrofes mais conhecidas da música popular brasileira, o pernambucano Alceu Valença nomeia uma série de ingredientes, em uma pequena ode a frutas das regiões Norte e Nordeste do país: “Da manga-rosa / Quero gosto e o sumo / Melão maduro, sapoti, juá / Jaboticaba, teu olhar noturno / Beijo travoso de umbu-cajá” [trecho da canção “Tropicana (Morena Tropicana)” (1982), de Alceu Valença e Vicente Barreto].

O umbu-cajá, de gosto “travoso”, isto é, amargo, e outros 15 alimentos tradicionais de Sergipe estão sendo resgatados em um projeto que visa mapear, registrar e catalogar alimentos em desuso, verdadeiras iguarias regionais. “Eu queria contar a história dos antigos, os modos de preparação dessas comidas, seus cultivos, quem são as pessoas que os cultivam e que, até hoje, fazem uso deles, numa cozinha ancestral e que nos identifica. São 16 variedades, entre plantas, peixes e pratos”, explica Paloma Naziazeno, autora do projeto Panela Sergipana: Sabores da Terra das Araras e Cajus.

Do agreste ao litoral, a pesquisadora tem viajado por todo o estado em busca de lembranças que liguem as pessoas aos alimentos. Comer é sempre mais do que apenas a apressada deglutição. “Através da comida, criamos uma ponte com nossa memória afetiva; através da comida, nosso ethos vai se forjando. O que mais, além do folclore, do sotaque, da linguagem coloquial e dos costumes, nos torna sergipanos?”, questiona. Como resultado das viagens, Paloma pretende lançar um livro com entrevistas com pessoas que produzem e manipulam esses alimentos, receitas tradicionais em desuso e releituras culinárias a partir deles, além de um extenso material fotográfico.

O estudo da alimentação e da comida no Brasil conta com um clássico da literatura nacional escrito por outro nordestino: História da Alimentação no Brasil (1967), do historiador, antropólogo, jornalista, advogado e escritor Câmara Cascudo. Nele, Cascudo destrincha hábitos alimentares e traz elementos da cozinha popular para demarcar: comida é cultura.

“Cresci na cozinha de vó, onde também tias-avós se fizeram presentes. Eram muitas mulheres que cozinhavam muito bem, receitas antigas, com ingredientes de uma cozinha ancestral. Os cheiros, os gestos, os sabores fizeram e fazem parte de minha memória afetiva. O projeto surgiu como uma espécie de homenagem às mulheres que vieram antes de mim e que faziam comida típica nordestina, indo além dos famosos pratos do Nordeste”, conta a autora.

Maxixão, manjongome, caboje, maniçoba, cari, uricuri, cambuci e maracujá-de-trovoada são alguns dos alimentos que farão parte da obra. “O dicuri, um coquinho bem pequeno, era mais presente na minha infância, era meu lanche na casa de vó. No entanto, do tempero cominho, por exemplo, o sergipano não abre mão. Ele tempera a comida de todos os dias”, diz.

Como ponto de partida, Paloma mapeou áreas de culturas agrícolas e estabeleceu um primeiro contato com pequenos produtores rurais que mantêm viva essa memória culinária nos municípios das regiões do sertão, do Baixo São Francisco, do agreste, do leste e do centro-sul de Sergipe.

Outras mulheres integram o projeto, como a fotógrafa Melissa Warwick – que tem registrado os alimentos com “um olhar poético”, segundo a autora – e a chef de cozinha Seichele Barbosa – que, além de ter contribuído na pesquisa inicial, assina uma seção com receitas novas, ressignificando esses alimentos ancestrais.

Para Paloma, o livro, que tem o apoio do programa Rumos, pode preencher a demanda por publicações desse gênero no estado e no país. A ideia é que, no fim, a equipe ofereça também um "banquete de gratidão", como forma de diálogo entre o saber formal e o popular, em um retorno às regiões de origem dos alimentos para mostrar às comunidades novas manipulações dos produtos por elas cultivados.

“Acho que o livro tem importância para todos que trabalham com culinária brasileira e para os amantes anônimos da cozinha. Panela Sergipana é o resgate de alimentos que caíram no esquecimento ao longo dos anos”, diz a autora. “Depois do lançamento aqui em Sergipe, seguimos para outras capitais do país, apresentando nossa comida de herança.”

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