por André Felipe de Medeiros

O ano era 1897 quando a capital de Minas Gerais foi transferida de Ouro Preto para a recém-construída Belo Horizonte, cidade que nasceu sob o título de “primeira capital brasileira projetada”. Tal projeto incluía traços retilíneos nos desenhos de suas ruas e um plano de urbanização com os princípios mais desenvolvidos para a época. Parte da escolha do lugar para sua construção veio da abundância de recursos hídricos da região, uma característica de que quem transita hoje pelas avenidas da sexta maior cidade brasileira pode nem sequer desconfiar, visto que seus córregos foram apagados da paisagem local.

O livro Em memória das águas reconstrói a história da ação humana sobre aquela região a partir de registros documentais e cartográficos feitos entre 1894 e 1898. Mosaicos, fotografias e diagramas ajudam a compor a narrativa exposta na obra – com projeto contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 para sua materialização –, o que resultou em um passeio tão informativo pelo passado da capital mineira quanto inspirador, seja pela linguagem gráfica, seja pela reflexão causada por esse conhecimento diante das crises hídricas que a área metropolitana de BH enfrenta hoje.

A pesquisa e o “quebra-cabeça”

Thiago Alfenas, organizador de Em memória das águas, possui uma relação de longa data com as cadernetas de campo que serviram de inspiração para a produção do livro. Falando ao Itaú Cultural (IC), ele conta que sua aproximação com esse acervo aconteceu durante a pesquisa acadêmica que realizou na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA/UFMG). Para seu estudo, Alfenas digitalizou esse patrimônio do Museu Histórico Abílio Barreto composto de 780 cadernetas de campo que trazem “a representação mais próxima do terreno e da superfície sobre a qual foi construída Belo Horizonte”, nas palavras do autor.

“Para que a comissão de engenheiros pudesse fazer o projeto de uma nova cidade, era preciso entender aquele território do ponto de vista físico: quais eram as águas, qual era o solo, qual era a vegetação – um extenso levantamento de tudo o que ali havia”, conta ele. “A representação mais imediata do terreno são as cadernetas, e só depois vieram as plantas, que já foram muito estudadas.” Em memória das águas nasceu da intenção de aproveitar o apelo visual que esse material tem por si só e a democratização de um conteúdo difícil de ser lido até mesmo por especialistas.

O tratamento das imagens levou quase um ano para ser realizado, enquanto Alfenas “tentava compreender com propriedade o que era aquilo ali registrado”, como ele explica, “quais córregos de Belo Horizonte aparecem representados nesse material e quais foram as transformações sofridas por eles em quase 130 anos”. Tendo as águas como norte para toda a realização do projeto, o livro foi organizado a partir das 15 microbacias hidrográficas levantadas no século XIX pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC).

A pesquisa “tenta reproduzir os caminhos percorridos pela CCNC 130 anos atrás entendendo as transformações impostas ao território”, diz o autor, que acrescenta que esse processo o ajudou também “a conhecer melhor os moradores da região, as pessoas que testemunharam essas transformações”. Segundo ele, o livro conta “como foi o processo de urbanização de cada uma das bacias hidrográficas até chegar ao que motivou a criação desse projeto, que são as cadernetas”.

Mesmo por meio de todos esses processos, compreender a história que esses documentos contam não é nada simples – “é um material muito difícil de ser absorvido e de ser decodificado”, nas palavras de Alfenas, que conta ter investido meses de pesquisa para cada uma das fotomontagens presentes no livro. “É complicado entender o que aquelas informações soltas podem fornecer, porque eu tenho dados que só depois são lapidados e viram informações visuais. A organização desse mosaico não é intuitiva”, conta ele, que descreve o processo como um quebra-cabeça.

Só após tantos estudos foi produzido o trabalho gráfico, que aproveitou as imagens desse acervo de forma que ele pudesse ser mais facilmente lido, seja por especialistas, seja pelo público em geral. Por fim, houve ainda o exercício de espacialização do território atual, para entendermos com maior profundidade quais foram as principais transformações que invisibilizam hoje os córregos que um dia, há tanto tempo, fizeram com que aquele local fosse escolhido para sediar a nova capital do estado.

Fotografia de um lago. A água age como um espelho que reflete imagens de árvores e luz solar.
Registro do processo de expedições do projeto (imagem: divulgação)

Águas invisibilizadas pela urbanização

“No final do século XIX e início do século XX havia muita propaganda desse modelo de urbanização, com todo o aparato de modernização dos aparelhos urbanos”, conta Alfenas, “mas, hoje, vemos que ele tem impactos ambientais negativos. Os córregos de Belo Horizonte foram quase 100% tamponados, foram profundamente agredidos em uma espécie de violência ambiental. E, atualmente, nós sofremos as consequências, seja com problemas decorrentes da falta de água ou com as enchentes.”

Há um ano, durante o inverno de 2021, BH e seus arredores registraram sua pior crise de abastecimento de água em 111 anos, uma situação classificada como “emergência hídrica” pelo Sistema Nacional de Meteorologia (SNM). “É irônico, porque esse local foi escolhido para ser a nova capital de Minas Gerais justamente pela abundância de água”, comenta Alfenas. “No entanto, pela maneira como a cidade foi planejada, temos hoje uma situação de invisibilização e de um dano de impacto ambiental recorrente.”

“Se você pega o celular e abre a internet, vê uma série de impactos ambientais acontecendo a todo momento, muitos deles propositais, como queimadas e desmatamentos, mas muitos outros associados a processos longos, como os de urbanização”, explica o autor. “Em cidades como Belo Horizonte e São Paulo, percebemos com muita facilidade como a água foi excluída do traçado urbano. Ela não foi incorporada ao desenho da cidade por causa de um pensamento que se difundiu amplamente no momento em que elas foram projetadas ou reformadas. Com o conhecimento que temos hoje, somos capazes de refletir e criticar essas escolhas.”

Em memória das águas pode ser encontrado à venda exclusivamente na Livraria Jenipapo, localizada à Rua Fernandes Tourinho, 241, no bairro Savassi, em Belo Horizonte.

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