Maracatu feminino potencializa o protagonismo das mulheres na cultura popular
26/07/2019 - 18:20
por Heloísa Iaconis
Rainhas, reis, princesas, príncipes, baianas, caboclos. Vários são os personagens que constituem o maracatu, manifestação criada por escravos como maneira de preservar a memória dos seus. Até os anos 1960, porém, apenas figuras masculinas integravam o cortejo: mesmo os papéis tidos como femininos eram representados por homens. No fim dessa década, permitiu-se que mulheres ocupassem funções secundárias, postos que não se colocavam na porção dianteira do desfile. Entre as justificativas para afastá-las da brincadeira estava, por exemplo, a menstruação: elas sangram mês a mês e, portanto, podem sujar as fantasias tão belas, diziam. Foi contra esse preconceito que, em 2004, a Associação das Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam), em Pernambuco, criou o Maracatu Feminino Coração Nazareno, um resgate do folguedo do povo e uma construção do protagonismo delas – um poder decisório e de fala que se alastra pelas demais esferas da vida.
Nesse grupo, atrelado à categoria de baque solto, há mais de 70 componentes: meninas, moças, senhoras, mães, filhas, todas elas parte de um projeto que visa não só à atuação efetiva no maracatu, como também ao revigoramento de uma postura e uma consciência empoderadas. Com esse intuito duplo, a Amunam se inscreveu no programa Rumos Itaú Cultural para que esse mulherio tenha uma verba que o leve a perpetuar o seu trabalho.
A iniciativa Mulheres Fortalecendo Raízes da Cultura Popular foi então selecionada no edital 2017-2018 e, a partir desse suporte (financeiro e de produção coletiva), desenvolve uma série de atividades: o conserto de indumentárias e a realização de seminários e oficinas que incentivam o pensamento sobre temas ligados a questões de gênero, além do fomento de ações que proporcionem a geração de renda para as envolvidas. No interior das terras dos canaviais, de modo distinto ao que continua a ocorrer por aí, o feminino espraia-se pelos personagens: são elas, todas elas, que desempenham cada uma das missões – rainhas, reis, princesas, príncipes, baianas, caboclos.
Um coração nunca é apenas um
Dezenove trabalhadoras rurais reunidas paralelamente aos encontros do sindicato: assim teve início uma sequência de compromissos só delas, elas que não eram ouvidas pelos homens sindicalizados. Cansadas da falta de espaço, passaram a conversar entre si nas comunidades. E muito se estruturaram que acabaram por se tornar uma entidade, denominada Amunam, organização que se mobiliza em torno de assuntos como feminismo, raça, educação sexual, combate à violência e governança, um leque crítico e ativo que inspira autonomia e potência.
Em um contexto cheio de estímulos favoráveis à criatividade das mulheres, surge o maracatu 100% feminino, o qual se põe firme em oposição a qualquer intolerância. “Ainda existe preconceito, mas a gente supera. Tenho certeza de que fazemos bonito”, afirma Eliane Rodrigues, dirigente da ONG. O fazer bonito começa, aliás, na costura das roupas, vestimentas que precisam ser renovadas constantemente, devido ao desgaste (tecido esgarçado, desbotado pelo sol) e ao valor que têm para o desenrolar da apresentação. Apoiada pelo Rumos, a equipe cria e recria figurinos e o estandarte, processo demorado, oportunidade de as participantes aprenderem a costurar e, quem sabe, encontrarem nas linhas e nas agulhas uma profissão.
Fora o cerzir paciente, de 2018 a 2019 a associação oferece, a um total de 35 mulheres, rodas de discussão a respeito da história do maracatu, desde as crenças até os vários ritmos, debates que se unem a diálogos acerca de gênero. Em março deste ano, um seminário abriu o ciclo de tarefas assegurado pela contribuição do Itaú Cultural, fase que vislumbra mais um seminário (de encerramento, em novembro) e, na próxima temporada festiva, novos adereços e brilhos a desfilar nas ruas pernambucanas. “A cultura é coisa de Deus, como a comida, e de todos os corações”, pondera Eliane. Um coração nunca é apenas um: ele se multiplica, mora em mais de um peito, são todos em um – e é essa harmonia inventora que conduz os batimentos, de marcha a samba curto, nazarenos.